segunda-feira, 5 de abril de 2010

UTILITARIMO


INTRODUÇÃO

Vida e obra

O utilitarismo pode ser caracterizado, de modo geral, como a posição de que o prazer é a única coisa boa, e a dor a única coisa má, e que há que maximizar o prazer e minimizar a dor.

De acordo com o empirismo, todo o conhecimento provém dos sentidos. De acordo com o associativismo, as nossas ideias estão ligadas entre si através de leis gerais.

No seu tempo, as obras mais influentes de Mill foram Sistema de Lógica e Princípios de Economia Política. A primeira defende um tratamento empirista daquilo que é hoje abrangido pela epistemologia, a filosofia da linguagem e a filosofia da ciência; a segunda, exibe uma grande preocupação pelas condições de vida da classe operária. Contudo, as obras de Mill que exerceram maior influência no século XX foram Utilitarismo e Sobre a Liberdade. A primeira defende, em traços gerais, o utilitarismo de James Mill e Bentham, e a segunda é uma defesa, hoje clássica, da posição de que o estado deve evitar ao máximo interferir na vida das pessoas. As obras de Mill exibem a abrangência dos seus interesses, não apenas intelectuais e académicos, mas também filantrópicos e sociais.


A filosofia moral de Mill

O consequencialismo é uma teoria composta por duas partes: uma teoria do bom e uma teoria do correcto. A primeira trata de determinar que estados de coisas são bons, fornecendo também critérios para os comparar (...) o correcto consiste em maximizar o bom.

Teorias "não consequentalistas" defendem uma relação diferente entre a teoria do bom e a teoria do correcto. [Uma teoria ... típica] nega que o correcto consista sempre em maximizar o bom.


A teoria do bom de Mill

Em primeiro lugar, é preciso especificar a teoria do bom. Em segundo lugar, é preciso especificar o que se entende por "maximizar o bom".

Ao contrário de Bentham (também ele hedonista), Mill considera que há prazeres superiores e inferiores, sendo que um prazer superior é sempre preferível a um prazer inferior, ainda que seja menos intenso e menos duradouro que este. Os prazeres que Mill menciona, especificamente são os que estão associados ao intelecto, às emoções, à imaginação e aos sentimentos morais.


A noção de maximização de Mill

Uma acção é correcta se, e só se, [previsivelmente] maximiza a utilidade de todos os envolvidos. (...) Não interessa como essa utilidade está "distribuída".

É preciso especificar: previsivelmente para quem? (...) Todas as teorias normativas enfrentam este problema.


Utilitarismo dos actos e utilitarismo das regras

O utilitarismo das regras foi acusado, por diversas vezes, de ser uma posição insustentável: ou se reduz (tanto em teoria, como na prática) a uma versão de não consequencialismo, ou se reduz (se não em teoria, então pelo menos na prática) ao utilitarismo dos actos.


Críticas preliminares ao utilitarismo de Mill


Problemas com a noção de maximização

Não especificámos se a maximização da utilidade se refere à maximização da utilidade de todos os seres que presentemente existem, ou que poderão vir a existir.


Boas dores e maus prazeres

(...)
O eudemonismo é a posição, de inspiração aristotélica, de que o bom é a felicidade.


Prazeres superiores e inferiores

Há quem objecte que isso é inconsistente com o hedonismo; mas a distinção entre prazeres superiores e inferiores não é, certamente, inconsistente com o eudemonismo.


Utilitarismo das preferências

Durante o século XX, vários filósofos preferiram deixar de falar em maximizar o prazer, e passaram a falar em maximizar a satisfação de preferências.

A não ser que tenhamos razão para pensar que a pessoa está a ser irracional ou ignora factos relevantes, há uma presunção a favor da ideia de que devemos deixar que a pessoa escolha.

A capacidade de determinarmos como viver a nossa vida, é um elemento tão importante de uma vida feliz que qualquer interferência deve ser evitada a todo o custo. O utilitarismo das preferências e o eudemonismo partilham uma ideia muito importante: a de que a própria pessoa pode não saber o que é melhor para ela.


Comparações interpessoais de utilidade

Há quem se oponha ao utilitarismo por defender a possibilidade de estabelecer comparações interpessoais de utilidade. Há duas versões principais desta objecção. De acordo com a versão epistemológica, é muito difícil encontrar métodos fiáveis para comparar a utilidade entre diferentes pessoas. De acordo com a versão metafísica, as utilidades individuais são incomesuráveis.

A versão epistemológica da objecção não nega que seja possível estabelecer comparações interpessoais de utilidade, mas frisa que é raro haver situações de tão fácil resolução. No entanto, ao rejeitar o hedonismo e aceitar o eudemonismo, deixamos de considerar que são experiências mentais de prazer de diferentes pessoas que têm de ser comparadas; por isso, esta motivação passa a ser infundada.

Por isso, a resposta à versão epistemológica da objecção é a seguinte: desde que saibamos quais são os elementos principais de uma vida feliz e qual o seu peso relativo, saberemos estabelecer comparações interpessoais de utilidade.


Objecções não consequencialistas

Veremos três distinções importantes que o utilitarismo (e, de facto, qualquer teoria consequencialista) parece não conseguir acomodar.


Três distinções

1. A Distinção entre Actos e Omissões - Os defensores da distinção dizem que o utilitarismo implica que uma omissão e um acto são condutas igualmente más, dado que ambas terão as mesmas consequências. Mas, intuitivamente, parece ser pior um acto do que uma omissão.

A única coisa a que o utilitarista pode apelar é à diferença entre a avaliação da moralidade e da acção, e a avaliação da moralidade do carácter do agente. Embora as acções sejam igualmente más, um agente é moralmente muito pior que o outro. No entanto, para o utilitarista clássico, (...) depara-se com a objecção do benfeitor involuntário (...) que, embora aja apenas de modo egoísta realiza a acção que previsivelmente maximizará a utilidade, dado que, (...) o utilitarista parece forçado a dizer que o benfeitor involuntário tem um bom carácter. Mas não pode ter um bom carácter porque ele não realiza essa acção porque quer realizar a acção que previsivelmente maximizará a utilidade. Logo, ao utilitarista clássico só parece restar a opção de deixar de falar de bom e mau carácter e falar apenas em boas e más acções.

2. A Distinção ente os Efeitos Pretendidos de uma Acção e os Efeitos Previstos de uma Acção - O exemplo que tradicionalmente se dá para ilustrar a distinção é a de dois tipos de aborto: por histerectomia (o útero é removido) e por cranioclasia (a cabeça do feto é esmagada). De acordo com a interpretação mais comum do chamado "princípio do duplo efeito", desde que a vida da mãe esteja em perigo, o aborto por histerectomia é permitido, pois a morte do feto é prevista, mas não pretendida; o aborto por cranioclasia, por outro lado, não é permitido, pois a morte do feto é pretendida e não apenas prevista.

Um utilitarista terá de dizer que o resultado de realizar uma histerectomia e uma cranioclasia é precisamente o mesmo, pelo que ou é permitido realizar o aborto em ambos os casos ou não é permitido realizar o aborto em qualquer dos casos. O utilitarista não consegue dar lugar à distinção entre efeitos previstos e efeitos pretendidos, que todavia tem um certo apelo intuitivo.

3. A Distinção entre Actos Exigidos pelo Dever e Actos Supererrogatórios - (...) de origem latina: supererogatio significa literalmente, "pagar mais do que é devido".

Se um acto é comummente tido por caridoso maximiza a utilidade, então esse acto não é meramente supererrogatório, mas sim exigido pelo dever. Por isso, de acordo com o utilitarismo não há actos supererrogatórios. Intuitivamente, isto parece falso.

[ O utilitarismo não distingue entre responsabilidade positiva (responsabilidade pelas coisas que fazemos) e responsabilidade negativa (responsabilidade por todas as coisas que acontecem o mundo), "A Critique of Utilitarianism" de Bernard Williams. ]

Mill tenta dar lugar à noção de supererrogação dizendo que, "Ninguém tem um direito moral a nossa generosidade ou beneficência, porque não estamos obrigados moralmente obrigados a praticar essas virtudes para com qualquer indivíduo determinado". Uma das ideias básicas do consequencialismo é que, se duas acções têm, previsivelmente, as mesmas consequências, realizá-las tem o mesmo valor moral. Se Mill põe isto em causa, então parece estar a abandonar o consequencialismo.


O utilitarismo e a individualidade das pessoas

Por vezes, é legítimo esquecer a individualidade das pessoas e tratar o conjunto destas como se fosse uma única pessoa.

[Problemas simétricos] O utilitarista não parece dar atenção suficiente à individualidade das pessoas; o adversário do utilitarismo parece dar demasiada atenção à individualidade das pessoas.


Porquê o utilitarismo?

Ao contrário das outras teorias, como a ética das virtudes, que centram a atenção no tipo de pessoa que devemos ser, o utilitarismo dirige directamente a nossa atenção para o modo como as coisas são e para aquilo que precisa de ser feito.


( I ) OBSERVAÇÕES GERAIS

De entre as circunstâncias que constituem a condição do conhecimento humano, poucas há mais reveladoras do estado primitivo no qual se arrasta ainda a especulação do fundamento da moralidade.

É certo que há uma confusão e incerteza semelhantes, e nalguns casos uma discordância semelhante, quanto aos primeiros princípios de todas as ciências, sem que isso tenha, na maioria dos casos, a fiabilidade das conclusões dessas ciências.

[ O conhecimento teórico e o conhecimento prático parecem começar por lados diferentes. No caso das ciências teóricas, geralmente começamos por conhecimento do caso particular, ainda que desconheçamos o princípio. No caso das ciências práticas temos de começar por conhecer o princípio. ]

A nossa faculdade moral fornece-nos apenas os princípios genéricos dos juízos morais; é um ramo da nossa razão, não [abstraída] da nossa faculdade sensível; tem de ser consultada para as doutrinas abstractas da moralidade.
(...)
[ Noção de proposições analíticas: proposições que podemos saber que são verdadeiras, ou falsas, atendendo apenas ao seu significado (o que não é a mesma coisa que dizer que são verdadeiras ou falsas por causa do seu significado, como os positivistas lógicos erradamente julgavam). ]

Apesar de a inexistência de um primeiro princípio reconhecido ter tornado a ética não tanto um guia mas uma consagração dos sentimentos efectivos dos homens, ainda assim, o princípio de utilidade ou, como Bentham mais tarde lhe chamou, o princípio da maior felicidade, tem tido um papel importante na formação das doutrinas morais mesmo daqueles que rejeitam com maior desprezo a sua autoridade. Não há escola alguma de pensamento que recuse admitir que a influência das acções sobre a felicidade é a consideração mais pertinente e até predominante em muitos aspectos da moral. A Metafísica da Ética, de Kant, estabelece um primeiro princípio universal como origem e fundamento da obrigação moral; "Age de tal maneira que a regra da tua acção possa ser adoptada como lei por todos os seres racionais." Mas quando começa a deduzir deste preceito qualquer um dos deveres reais da moralidade, fracassa, de forma quase grotesca (...) as consequências da sua adopção universal seriam de tal ordem que ninguém escolheria sofrê-las.
[ Justificar um princípio dizendo que ao agirmos de acordo com um princípio oposto estaríamos a incorrer numa espécie de contradição é ignorar - ou, pelo menos, atribuir pouca importância - às consequências de se agir de acordo com tal princípio. A objecção de Mill é que, ao contrário do que Kant pretende, não há qualquer argumento a favor de um princípio da moralidade que não seja ao mesmo tempo um argumento sobre as consequências, desejáveis ou não, em função do interesse colectivo, de aceitar ou rejeitar tal princípio. ]

As questões de fins últimos não são susceptíveis de prova directa (...) tem de o ser mostrado que é um meio para algo admitido como bom.
[ Não implica que sejamos forçados a recorrer à estratégia intuicionista (só por meio de uma intuição poderá o intelecto vir a assentir a uma doutrina) ou a aceitar que a escolha entre fins últimos é completamente arbitrária. ]


( II ) O QUE O UTILITARISMO É

[ Bentham considerava que só a intensidade e a duração de um prazer importavam no cálculo da utilidade. Epicuro (342-270 a. C) era hedonista: defendia que o prazer é o único fim último bom. E também defendia que os prazeres mentais são preferíveis aos corporais. No entanto, ao contrário de Mill, defendia que a única coisa boa para cada um era o prazer de cada um. ]

Os epicuristas [cometeram] erros ao derivar o seu esquema de consequências a partir do princípio utilitarista. Para fazer isto de uma forma satisfatória é necessário incluir muitos elementos estóicos e cristãos. Os autores utilitaristas localizaram em geral a superioridade dos prazeres mentais sobre s corporais - isto é, nas suas vantagens circunstanciais em vez de na sua natureza intrínseca; mas poderiam ter tomado outro caminho.

[ Quando uma pessoa diz que prefere A a B, à partida terá uma de duas coisas em mente: 1) que não trocaria uma determinada quantidade de A por qualquer quantidade de B; ou 2) que só trocaria uma quantidade de A por uma quantidade muito mais elevada de B. ]

É um facto inquestionável que aqueles que estão igualmente familiarizados com ambos, e são igualmente capazes de os apreciar e gozar, dão uma acentuada preferência ao modo de vida no qual se faz uso das faculdades superiores. Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas em qualquer um dos animais inferiores, a troco da máxima quantidade dos prazeres de um animal. Se alguma vez imaginam que o fariam, é apenas em casos de infelicidade tão extrema que para fugir dela trocariam o seu destino por qualquer outro, por mais indesejável que fosse aos seus próprios olhos. Um ser com faculdades superiores precisa de mais para ser feliz, é provavelmente capaz de sofrimento mais acentuado, e certamente está a ele exposto com mais frequência, do que um ser de tipo inferior; mas, apesar de todas estas desvantagens, não pode nunca desejar realmente afundar-se no que sente ser um nível inferior de existência. Podemos dar a explicação que quisermos para esta relutância, mas a sua designação mais adequada é um sentido de dignidade, que todos possuem, e numa certa proporcionalidade relativamente às suas faculdades mais elevadas, parte tão essencial da felicidade daqueles nos quais é mais forte, que nada que entre em conflito com ele poderia constituir um obstáculo de desejo, excepto de modo passageiro. [São] duas ideias muito diferentes de felicidade e contentamento. Aprender a suportar as imperfeições da sua felicidade, se são de todo suportáveis; e elas não o farão invejar o ser que não tem consciência das imperfeições. E se o [homem satisfeito] têm uma opinião diferente, é apenas porque conhecem o seu lado da questão. A outra parte (o homem insatisfeito) conhece ambos os lados¶.

Os homens, por fraqueza de carácter, optam com frequência pelo bem mais próximo, entregam-se a prazeres sensuais em prejuízo da saúde, embora com perfeita consciência de que a saúde é o maior dos bens. A capacidade para os sentimentos mais nobres é, na maioria das naturezas, uma planta delicada, facilmente destruída, não apenas por influências hostis, mas por mera falta de sustento. Os homens perdem as suas aspirações mais altas como perdem os seus gostos intelectuais - porque não têm tempo ou oportunidade para os satisfazer; e habituam-se aos prazeres inferiores.

O que há para decidir se vale a pena a prossecução de um determinado prazer à custa de uma determinada dor, excepto os sentimentos e o juízo de quem tem experiência?

[ Regra directriz da conduta humana ] E, se pode duvidar-se se um carácter nobre é mais feliz pela sua nobreza, não pode haver dúvidas de que faz os outros mais felizes, e que o mundo em geral beneficia imensamente com isso. Logo, o utilitarismo só poderia atingir o seu fim cultivando em geral a nobreza de carácter, ainda que cada indivíduo fosse apenas beneficiado pela nobreza alheia, e [não] a sua própria.

[ O utilitarismo defende também os interesses dos animais. ]

Outra classe de objectores, que afirmam que a felicidade, sob qualquer forma, não pode ser o propósito racional da acção e da vida humana; porque, em primeiro lugar, é intangível; e afirmam, de seguida, que os seres humanos não poderiam ter-se tornado nobres a não ser por meio da renúncia (o principio e condição de toda a virtude).
[ (...) da ideia romântica; uma vida atormentada, genial, contemplativa e centrada sobre si. ]

[ Mesmo que a procura da felicidade fosse um objectivo quimérico, o fim último da acção humana seria a redução, ou prevenção, da infelicidade. ]
A felicidade de que falavam não era uma vida em êxtase; mas momentos desses, numa existência feita de umas poucas dores transitórias, muitos e variados prazeres, com uma predominância clara dos prazeres activos sobre os passivos. (...) Uma vida assim constituída sempre pareceu digna do nome felicidade a quantos tiveram a boa sorte de o alcançar. A educação miserável de hoje, e a miserável organização social, são os únicos obstáculos que impedem que esteja ao alcance de quase todos.

As principais componentes de uma vida feliz parecem ser duas, cada uma das quais sendo com frequência considerada por si mesmo suficiente para o efeito: tranquilidade e excitamento. Apenas aqueles para que a indolência se tornou um vício não desejam excitamento após um intervalo de repouso. Para aqueles que não têm afectos privados ou públicos, os excitamentos da vida são muito breves, e em qualquer caso perdem valor. (...) A seguir ao egoísmo, a causa principal que torna a vida insatisfatória é a falta de cultivação do espírito. Um espírito cultivado encontra fontes de inexaurível interesse em tudo quanto o rodeia.

Não há absolutamente qualquer razão na natureza das coisas para que uma quantidade de cultura do espírito suficiente para despertar um interesse inteligente nestes objectos de contemplação não seja a herança de todos quantos nascem num país civilizado. Num mundo onde existe existe tanto de interesse, tanto para desfrutar, e também tanto para corrigir e melhorar, todos os que têm esta moderada quantidade de requisitos morais e intelectuais são capazes de uma existência que podemos considerar invejável; e a menos que tal pessoa, por meio de más leis, ou sujeição à vontade de outrem, seja privada da liberdade de usar as fontes de felicidade ao seu alcance, ela não deixará de achar essa existência invejável, se escapar aos males absolutos da vida, as grandes fontes de sofrimento físico e mental. Ninguém pode duvidar de que a maioria dos grandes males absolutos do mundo são em si mesmos elimináveis (conquistadas pelo empenho e pelo esforço), e serão por fim reduzidos ao mínimo, se o conhecimento humano continuar a melhorar. Cada avanço nessa direcção liberta-nos de algumas arbitrariedades, não apenas das que abreviam as nossas vidas, mas, o que nos importa ainda mais, das que nos privam daqueles de quem a nossa felicidade depende.

[ O transcendentalismo, um tipo de filosofia popular muito comum nos finais do século XIX, defende a existência de um dualismo fundamental entre matéria e o espírito. ]
A moralidade utilitarista reconhece, de facto, nos seres humanos o poder de sacrificarem o seu maior bem em prol do bem dos outros. Apenas recusa admitir que o sacrifício é, em si, um bem. A moralidade utilitarista considera desperdiçado qualquer sacrifício que não aumente, ou tenda a aumentar, a quantidade total de felicidade (de acordo com os limites impostos pelos interesses colectivos da humanidade).

O utilitarismo exige que o agente seja tão estritamente imparcial entre a sua própria felicidade e a dos outros como um espectador desinteressado e benevolente. Fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, e amar o próximo como a si mesmo, constituem a perfeição do ideal da moralidade utilitarista.
(...)
Atingir a maior aproximação possível a este ideal exigiria que as leis e a organização social colocassem o interesse de cada indivíduo, tanto quanto possível, em harmonia com o interesse de todos.

Os críticos do utilitarismo que entre eles têm algo parecido a uma ideia justa do seu carácter desinteressado, encontram por vezes defeito no seu padrão, considerando-o demasiado elevado para a humanidade. Isto é confundir a regra da acção com o seu motivo. O objectivo da ética é dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por que meios podemos conhecê-los; nenhum sistema de ética exige um sentimento de dever. [Moralistas utilitaristas] O motivo nada tem a ver com a moralidade da acção, embora tenha muito a ver com o valor do agente.
[ A moralidade da acção depende inteiramente da intenção - isto é, do que o agente quer fazer. Mas o motivo, é, o sentimento que o faz desejar tal coisa. ]
A esmagadora maioria das boas acções são realizadas não para o bem do mundo, mas dos indivíduos; os pensamentos do homem mais virtuoso não necessitam nestas ocasiões de ir além das pessoas particulares envolvidas, excepto na medida em que é necessário assegurar-se de que ao beneficiá-las não está a violar os direitos de qualquer outra pessoa. As ocasiões nas quais qualquer pessoa tem em seu poder fazer isto numa escala alargada são puramente excpecionais; e apenas nestas ocasiões lhe é exigido que tenha em conta a utilidade pública. Apenas aqueles cuja inflência das acções se alarga à sociedade em geral precisam de preocupar-se habitualmente com um objecto de grandes dimensões.

Afirma-se com frequência que o utilitarismo torna os homens frios e insensíveis, que os faz olhar apenas para as considerações secas e duras das consequências das acções, não incluindo nas suas estimativas morais as qualidades das quais emanam essas acções. Se a afirmação significa que não permitem que o seu juízo sober a correcção ou incorrecção de uma acção seja influenciado pela sua opinião das qualidades da pessoa que a pratica, isto é uma queixa não contra o utilitarismo, mas contra a posse de qualquer padrão de moralidade; pois seguramente nenhum padrão moral de que se saiba decide se uma acção é boa ou má por ser praticada por um homem amável, corajoso ou benevolente, ou o contrário disto. Estas considerações são relevantes, não para a avaliação de acções, mas sim de pessoas. Apesar de tudo, os utilitaristas defendem que a longo prazo a melhor prova de um bom carácter são as boas acções.

Muitos utilitaristas encaram a moralidade das acções numa perspectiva demasiado restritiva, e não dão importância suficiente às outras belezas do carácter pelas quais um ser humano se torna digno de amor ou admiração; tal como o fazem todos os outros moralistas nas mesmas condições. O que pode dizer-se para desculpar os outros moralistas, pode dizer-se também no caso dos utilitaristas, nomeadamente que, a ter de haver algum erro, é preferível que seja por esse lado. Como entre os adeptos de outros sistemas, existem todos os graus imagináveis de rigidez e indulgência na aplicação do seu padrão: alguns são mesmo de um rigor puritano, enquanto outros são tão indulgentes quanto um pecador ou um sentimentalista pode desejar.


As pessoas esforçam-se frequentemente tão pouco para entender o significado de qualquer opinião contra a qual tenham preconceitos, têm em geral pouca consciência de que esta ignorância voluntária constitui um defeito. Caso seja verdadeira a crença de que Deus deseja a felicidade das suas criaturas, e que esse foi o proposito ao criá-las, a utilidade não só não é uma doutrina ímpia, como é mais profundamente religiosa do que qualquer outra.

A utilidade é com frequência estigmatizada de forma sumária como doutrina imoral chamando-se-lhe expediência, tirando partido do uso popular desse termo.
[ "Expediência" tem dois sentidos comuns (eficiência e oportunismo), (...) qualquer consideração do que é correcto implica na realidade uma consideração do que é expediente no sentido de ser eficiente. O que é expediente no sentido de ser oportunista, revela-se prejudicial do ponto de vista da eficiência. ]
Qualquer desvio da verdade, ainda que involuntário, leva, na mesma proporção, ao enfraquecimento da fiabilidade das afirmações humanas, fiabilidade essa que é não apenas o suporte principal de todo o bem-estar social presente, mas cuja insuficiência faz mais do que qualquer outra coisa para retardar a civilização.

Durante toda a existência prévia da espécie humana, a humanidade tem estado a aprender por experiência as tendências das acções. É um capricho da fantasia supor que, se a humanidade concordasse em considerar a utilidade do teste da moralidade, continuaria sem concordar quanto ao que é útil, e não tomaria medidas para ensinar as suas noções sobre o assunto aos mais jovens, e impô-las por meio da lei e da opinião. Não é difícil provar que qualquer padrão ético funciona mal, desde que imaginemos a estupidez universal associada a ele. (...) Os corolários do princípio de utilidade, como os preceitos de qualquer arte prática, permitem um aperfeiçoamento sem limites e, num estado progressivo da mente humana, o seu aprefeiçoamento está permanentemente em curso. Mas passar por cima das generalizações intermédias, e testar cada acção individual directamente pelo primeiro princípio, é outra coisa. É uma estranha noção que o reconhecimento de um primeiro princípio é inconsistente com a admissão de princípios secundários. Seja qual for o princípio fundamental da moral que adoptemos, são necessários princípios subordinados para o aplicar; a impossibilidade de passar sem eles, sendo comum a todos os sistemas, não pode fornecer argumentos contra nenhum em particular; mas argumentar seriamente como se tais princípios secundários não pudessem existir, e como se a humanidade tivesse permanecido até agora, e deva permanecer para sempre, sem retirar quaisquer conclusões gerais da experiência da vida humana é atingir o ponto mais alto do absurdo alguma vez alcançado em controvérsias filósoficas.

Os restantes argumentos de reserva contra o utilitarismo consistem na sua maioria em atribuir-lhe a responsabilidade das fraquezas comuns da natureza humana, e as dificuldades gerais que embaraçam as pessoas conscienciosas ao moldarem o seu percurso na vida. Não é culpa de qualquer doutrina, mas sim da natureza complicada da vida humana, que a regras de conduta não possam ser estruturadas de tal forma que não requeiram excepções. Não existe qualquer doutrina ética que não tempere a rigidez das suas leis, permitindo uma certa margem de manobra, sob a responsabilidade do agente, para dar conta das peculiaridades das circunstâncias; e, em qualquer doutrina, aproveitando esta abertura, infiltrando-se o auto-engano e a desonestidade casuística. Não existe sistema moral algum sob o qual não ocorram casos inequívocos de obrigações contraditórias. São ultrapassados, na prática, com maior ou menor sucessom segundo o intelecto e a virtude dos indivíduos. Embora a aplicação do padrão possa ser difícil, é melhor do que não ter padrão nenhum; enquanto, noutros sistemas, com todas as leis morais a reclamar autoridade independente, não existe um árbitro comum capaz de se interpor entre elas; assentam em algo pouco melhor do que a sofística, e pela influência não reconhecida do princípio da utilidade, proporcionam livre amplitude à actuação de desejos e preferências pessoais. (...) Não há caso algum de obrigação moral no qual não esteja envolvido algum princípio secundário.


( III ) SOBRE A SANÇÃO ÚLTIMA DO PRINCÍPIO DE UTILIDADE

A questão apropriada [é] de onde deriva a sua força vinculativa?
[ Mill parece perguntar, por um lado, quais são os motivos, as sanções, quenos levam, ou podem levar, a agir moralmente. Mas, por outro lado, parece também estar a colocar uma pergunta ligeramente diferente: De onde deriva a moralidade o seu poder de me obrigar a fazer certas coisas? Presta-se a estas duas interpretações.
"No caso deste sentimento moral [o sentimento de justiça], como no caso dos outros sentimentos morais que temos, não há uma ligação necessária entre a questão da sua origem, e a da sua força vinculativa. O facto de um sentimento nos ser atribuído pela natureza não legitima necessariamente todas as suas inclinações." ]
Surge sempre que uma pessoa é exortada a adoptar um padrão, ou a remeter a moralidade para qualquer base sobre a qual não esteja habituado a apoiá-la. Pois a moralidade comum, aquela que foi consagrada pela educação e pela opinião, é a única que surge na mente associada ao sentimento de ser obrigatória em si; e, quando se pede a uma pessoa para acreditar que esta moralidade deriva a sua obrigatoriedade, os supostos corolários parecem ter maior força vinculativa do que o teorema original.

As sanções externas são a esperança de aprovação e o receio da parte dos nossos semelhantes. Exista ou não qualquer outra base de obrigação moral além da felicidade geral e, por mais imperfeita que possa ser a sua própria prática, desejam e elogiam nos outros toda a conduta face a si próprios susceptível de promover neles a felicidade.
(...)

A sanção interna do dever é uma só - um sentimento na nossa mente; mais ou menos intensa, resultante da violação do dever. Este sentimento, estando ligado à ideia pura de dever, e não a uma forma particular do mesmo, ou a qualquer uma das circunstâncias meramente extrínsecas, é a essência da consciência moral. A sua força vinculativa consiste na existência de uma massa de sentimentos que tem de ser vencida para se conseguir violar o nosso padrão do correcto e que, se ainda assim o violarmos, terá provavelmente de ser confrontada depois sob a forma de remorso. É isto que essencialmente a constitui.

Um sentimento subjectivo nas nossas mentes.
[ Nada há de externo à mente humana que mostre que a felicidade é boa ou que a faça boa. São os sentimentos morais que as pessoas têm que as fazem agir moralmente. (...) opõe-se assim a filósofos como Kant, que declaram ser a razão pura a fonte da obrigação moral. Kant distinguia as coisas tal como são percepcionados por nós - os fenómenos - das coisas tal como são em sem si mesmas. ]
[Ontologia] Nenhuma crença de que o dever é uma realidade objectiva é mais forte do que a crença de que Deus o é. A noção dos moralistas transcendentais tem de ser que esta sanção não existirá na mente a menos que se acredite ter a sua raiz fora da mente; quando o sentimento cessa, a obrigação cessa, e se achar o sentimento incoveniente, pode ignorá-lo e fazer o possível para tentar ver-se livre dele. Todos os moralistas admitem e lamentam a facilidade com que, na generalidade das mentes, a consciência moral pode ser silenciada ou suprimida.

Como outras capacidade adquiridas, a faculdade moral, se não é uma parte da nossa natureza, é uma ramificação natural dela; e suceptível de ser levada a um elevado grau de desenvolvimento através da cultura. Infelizmente é também susceptível de ser cultivada em praticamente qualquer direcção, mediante um uso suficiente das sanções externas e da força de impressões precoces.

Qualquer condição que seja essencial para um estado de sociedade, torna-se cada vez mais uma parte inseparável da concepção que cada pessoa tem do estado de coisas no qual nasceu. A associação entre iguais só pode existir baseada no entendimento de que os interesses de todos têm de ser encarados de modo igual. O fortalecimento dos laços sociais, e todo o crescimento saudável da sociedade, não dá apenas a cada indivíduo um interesse pessoal mais forte na consulta efectiva do bem-estar dos outros; leva-o também a identificar os seus sentimentos com um grau ainda maior de consideração prática por esse bem. O indivíduo ganha consciência de si próprio como um ser que se preocupa com os outros. Consequentemente, os mais pequenos germes desse sentimento são apossados e alimentados pelo contágio da empatia e as influências da educação; tecida à sua volta pela acção poderosa das sanções externas. Se agora imaginarmos este sentimento de unidade a ser ensinado como uma religião, e toda a força da educação, das instituições e da opinião, dirigidos, como em tempos aconteceu com a religião, no sentido de fazer cada pessoa crescer, desde a infância, rodeada por todos os lados pela afirmação e pela prática desse sentimento de unidade, penso que ninguém capaz de conceber esta ideia sentirá qualquer apreensão quanto à suficiência da sanção suprema para a moral da felicidade. A qualquer estudante de ética que ache difícil conceber tal ideia, recomendo para o facilitar, a segunda das duas principais obras de Monsieur Comte, o Systême de Politique Positive.

A concepção profundamente arreigada que cada indivíduo tem de si próprio tende a fazê-lo sentir como um dos seus desejos naturais que exista harmonia entre os seus sentimentos objectivos e os dos seus semelhantes. Esta convicção é a sanção suprema da moralidade da maior felicidade (...) constitui em si uma força vinculativa interna, proporcional à sensibilidade e generosidade de carácter.


( IV ) SOBRE O TIPO DE PROVA QUE O PRINCÍPIO DE UTILIDADE ADMITE

Se o fim que a doutrina utilitatista propõe para si mesma não fosse, em teoria e na prática, reconhecido como um fim, nada poderia alguma vez convencer alguém que o era. Nenhuma razão pode ser avançada para explicar por que razão a felicidade geral é desejável, excepto que cada pessoa, na medida em que pensa poder alcançar a sua própria felicidade, deseja-a.*
A felicidade conquistou o título de um dos fins da conduta e, consequentemente, um dos critérios da moralidade.

O desejo da virtude não é tão universal, mas é um facto tão autêntico como o desejo de felicidade.

A doutrina utilitarista defende não apenas que há que desejar a virtude, mas que há que desejá-la desinteressadamente, por si mesma. [Moralistas utilitaristas] acreditam que as acções e disposições apenas são virtuosas porque promovem outro fim que não a virtude; (...) a partir de considerações deste genero não apenas colocam a virtude à cabeça das coisas boas como meios para o fim último, como também reconhecem como facto psicológico a possibilidade de ser, para o indivíduo, um bem em si. Os ingredientes da felicidade são muito variados, e cada um é desejável em si, e não apenas na medida que engrossa um conjunto.

A virtude não é a única coisa que começa por ser um meio e que, se não fosse um meio para algo mais, seria e permaneceria indiferente, mas que, por associação com aquilo para que é um meio, se torna desejada por si mesma, e com a maior intensidade. Ao ser desejado por si mesmo é desejado como parte da felicidade. A felicidade não é uma ideia abstracta, mas um todo concreto...

Não havia qualquer desejo original de virtude, ou motivo para a virtude, a não ser o facto de propocionar o prazer, e especialmente proteger da dor. Por conseguinte, o padrão utilitarista, embora tolere e aprove os outros desejos adquiridos, até ao ponto a partir do qual se tornariam mais prejudiciais para a felicidade geral do que fomentadores dela, ordena e requer que se cultive o amor da virtude.

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