sábado, 17 de abril de 2010

PRINCÍPIOS DA FILOSFIA DO FUTURO




NECESSIDADE DE UMA REFORMA DA FILOSOFIA
(1842)

Uma filosofia que se inscreve na história da filosofia e só indirectamente, por meio dela, se relaciona com a história da humanidade é algo inteiramente diverso de uma filosofia que é imediatamente a história da humanidade.

Se encarássemos a questão da necessidade de uma transformação apenas do ponto de vista filosófico, encará-la-íamos de um modo demasiado restrito, mais, permanaceríamos no campo de uma banal querela de escola. Nada mais vão.

A reforma filosofia só pode ser a necessária, a verdadeira, a que corresponde à necessidade da época, da humanidade. Há certamente necessidades contrárias. Em que lado reside a verdadeira necessidade? Naquela que têm a exigência do futuro. A necessidade de conservação é apenas uma necessidade artificial, criada - é apenas reacção.

O movimento histórico só atinge um fundamento onde ele penetra no coração do homem.
O Cristianismo é negado - por razões de política, alimenta-se a este respeito, de modo intencional ou não, uma ilusão.

O Cristianismo já não corresponde nem ao homem teórico, nem ao homem prático.

A filosofia hegliana dissimulava a negação do Cristianismo sob a contradição entre representação e pensamento; aqui, todos os laços foram rejeitados.
Na origem, a religião é fogo, energia, verdade; toda a religião começa por ser estrita e incondicionalmente religiosa mas, com o tempo, esgota-se, torna-se laxa, infiel a si mesma, indiferente, submete-se à lei do acto (...) recorre-se à tradição ou à modificação do antigo livro da Lei.

Porque os homens de tal modo se apropriaram do verdadeiro (...) A negação consciente funda época nova, funda a necessidade de uma filosofia nova, franca, não mais cristã, resolutamente acristã.

Para substituir a religião, a filosofia deve introduzir em si mesma, de um modo a ela conforme, o que constitui a essência da religião.

As diferenças fundamentais da filosofia são diferenças fundamentais da humanidade. Para o lugar da fé, entrou a descrença; para o lugar da Bíblia, a razão; para o lugar da religião e da Igreja, a política; terra substitui o céu, o trabalho substitui a oração. O que é para a filosofia é resultado do pensamento, é para nós a certeza imediata. Necessitamos, pois, de um princípio conforme a esta imediatidade.
Devemos resumir num princípio supremo, num vocábulo supremo, aquilo em que quere-mos tornar-nos: só assim santificamos a nossa vida, fundamentamos a nossa tendência. Só assim nos libertamos da contradição que, presentemente, envenena o mais íntimo de nós mesmos: da contradição entre a nossa vida e o nosso pensamento e uma religião radicalmente contrária a esta vida e a este pensamento.

Confia em Deus, não no homem; dá graças a Deus e não ao homem, por conseguinte, o homem só por acidente está vinculado ao homem. Na explicação subjectiva do Estado, os homens reúnem-se pela simples razão que mão crêem em Deus algum, porque negam inconscientemente, de algum modo instintivo e prático, a sua fé religiosa. Não é a fé em Deus, mas a desconfiança em Deus que funda os Estados.

O Estado é a realidade, mas ao mesmo tempo também a refutação prática da fé religiosa. Os homens reconhecem no cristianismo uma religião que destrói a energia política dos homens.

O que o pensador, antes da consciência, tem no conhecimento, o homem prático tem-no no seu impulso. Pretende-se agora, no domínio da política, o que a Reforma quis e projectou no domínio da religião.

Se concebermos um ser diferente do homem como princípio e ser supremo, então a distinção do abstracto e do homem permanecerá a condição permanente do conhecimento deste ser; jamais chegaremos à unidade imediata conosco mesmos, com o mundo, com a realidade; reconciliamo-nos com o mundo mediante o outro, um terceiro, (...) temos um além, se já não fora de nós, pelo menos em nós; encontramo-nos sempre numa cisão entre a teoria e a prática.

O Papa, cabeça da Igreja, é homem como eu; o rei é homem como nós. Ele não pode, pois, impor ilimitadamente as suas fantasias.

terça-feira, 6 de abril de 2010

KARL POPPER - BUSCA INACABADA



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Nunca te deixes levar a tomar a sério os problemas acerca de palavras e seus significados. O que deve ser tomado a sério são questões de facto e afirmações sobre factos: teorias e hipóteses; os problemas que resolvem; e os problemas que levantam.
Isso é o caminho mais seguro para a perdição: o abandono dos problemas reais a bem dos problemas verbais.

[ver gráfico na pg. 37]

Toda a boa tradução é uma interpretação do texto original; e iria mesmo até dizer que toda a boa tradução de um texto não trivial tem de ser uma reconstrução teórica.

Tanto a precisão como a certeza são falsos ideais. A demanda da precisão é análoga à demanda da certeza, e ambas deveriam ser abandonadas.

É sempre indesejável fazer um esforço para aumentar a precisão por si mesma - em especial a precisão linguística - dado que isso leva normalmente a uma perda de clareza e a um desperdício de tempo e esforço em preliminares que frequentemente se revelam inúteis, porque são ultrapassados pelo desenvolvimento real do assunto: nunca se deveria tentar ser mais preciso do que a situação problemática exige.

Todo o aumento de clareza tem valor intelectual em si mesmo; um aumento de precisão ou exactidão tem apenas um valor pragmático como meio para um determinado fim.

Conteúdo lógico - a classe de todas as consequências que podem ser derivadas do enunciado da teoria.

Conteúdo informativo - "o poder assertivo de um enunciado consiste em que ele exclui certos casos possíveis." [o conteúdo informativo de uma teoria é o conjunto dos enunciados que são incompatíveis com a teoria. - o seu "conteúdo empírico"]

Dado que E pertence ao conteúdo informativo de de N, não-E pertence ao conteúdo lógico de N:não-E é implicada por N, um facto que, obviamente, não podia ser conhecido, de qualquer pessoa, antes de E ser descoberta.

Se quisermos compreender melhor uma teoria, o que temos de fazer primeiro é descobrir a sua relação lógica com esses problemas e terias existentes que constituem o que podemos chamar a "situação problemática" nesse instante particular do tempo.

A busca de precisão, em palavras ou conceitos ou significados, é uma empresa vã. Não há, simplesmente, essa coisa que seria um conceito preciso (sem ambiguidade) embora conceitos como "preço de cafeteira" e "trinta cêntimos" sejam em geral suficientemente precisos para o contexto do problema em que são usados. (Mas note-se o facto de que "trinta cêntimos" é, como conceito social ou económico, altamente variável: tinha há alguns anos uma significância totalmente diferente da que tem hoje.)

"Podemos dizer: o conceito deve ter uma fronteira nítida." Mas é claro que para este tipo de precisão absoluta ser pedido a um conceito definido, deve primeiro ser pedido aos conceitos definidores e, em ultima análise, aos nossos termos indefinidos ou primitivos. Todavia, isso é impossível.

Não tente antecipadamente tornar mais precisos os seus conceitos ou formulações na esperança simplória de que isso o munirá de um arsenal para uso futuro para lidar com problemas que ainda não surgiram. Podem nunca surgir; a evolução da teoria pode ultrapassar todos os seus esforços. As armas intelectuais que serão necessárias numa data posterior podem ser muito diferentes das que qualquer outra pessoa tem armazenadas.

O método ad hoc de lidar com problemas de clareza ou de precisão à medida que vai sendo necessário pode ser chamado "diálise", para o distinguir de análise, ou seja, da ideia de que a análise da linguagem como tal pode resolver problemas, ou criar armamento futuro. A diálise não pode resolver problemas. Os problemas só podem ser resolvidos com a ajuda de novas ideias. Mas os nossos problemas podem por vezes pedir que façamos novas distinções - ad hoc, para o fim em vista.


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A teoria marxista exige que a luta de classes seja intensificada, com o objectivo de acelerar a vinda do socialismo. As suas teses são que, embora a revolução possa reclamar algumas vítimas, o capitalismo está a reclamar mais vítimas do que a totalidade da revolução socialista.

Não só tinha aceite uma teoria complexa de maneira pouco acrítica, mas tinha também percebido um bom bocado do que estava errado, tanto na teoria como na prática do comunismo. Uma vez que tenha sacrificado a sua consciência intelectual em relação a um ponto pouco importante, um indivíduo não quer ceder com demasiada facilidade; o indivíduo deseja justificar o auto-sacrifício convencendo-se da bondade fundamental da causa, que é vista como pesando mais do que qualquer outro pequeno compromisso moral ou intelectual que possa ser requerido. Com cada um desses sacrifícios morais ou intelectuais, o indivíduo fica cada vez mais profundamente envolvido, fica pronto a apoiar os seus investimentos morais ou intelectuais na causa com mais investimentos. É como estar pronto para investir mais dinheiro para cobrir as perdas.

O núcleo do argumento marxiano (...) Consiste numa profecia histórica, combinada com um apelo implícito à seguinte lei moral: Ajuda a que ocorra o inevitável!

Um socialismo combinado com a liberdade individual (...) não sendo mais que um lindo sonho, a reconhecer que a tentativa para realizar a igualdade põe em perigo a liberdade e que, se a liberdade se perde, nem sequer entre os não livres haverá igualdade.


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(...)
(d) Segundo Marx, as alterações revolucionárias começam na base, por assim dizer: os meios de produção primeiro, depois as condições sociais de produção, em seguida o poder político e, por fim, as crenças ideológicas, que são as últimas a mudar. Mas na Revolução Russa, o poder político mudou primeiro e só depois a ideologia (Ditadura mais Electrificação) começou por mudar as condições sociais e os meios de produção a partir do topo. A reinterpretação da teoria da revolução de Marx, para escapar a esta falsificação, imunizou-a contra ataques futuros, transformando-a na teoria marxista vulgar (ou socioanalítica) que nos diz que as "motivações económicas" e a luta de classes impregnam toda a vida social.


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(...)


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O dogma fornece-nos um quadro de coordenadas para explorar a ordem desde mundo desconhecido e um pouco caótico em si mesmo, e também para criar ordem onde a ordem está ausente. Assim que encontrámos, ou erguemos, alguns marcos de referência, prosseguimos pela tentativa de experimentar novas maneiras de ordenar o mundo, novas coordenadas, novos modos de exploração e criação.

Uma grande grande teoria científica é um cosmos imposto ao caos.

"O nosso intelecto não deriva as suas leis da natureza, mas impõe as suas leis à natureza". Mas embora tenhamos, a princípio, de nos agarrar às nossas teorias, podemos tentar substituí-las por qualquer coisa melhor se tivermos aprendido, com a sua ajuda, onde elas nos deixam ficar mal. Assim, pode sobreviver uma fase científica ou crítica de reflexão, que é necessariamente precedida por uma fase não crítica.

As nossas teorias são as nossas invenções; com elas criamos um mundo: não o mundo real, mas as nossas próprias redes, em que tentamos capturar o mundo real.


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Para meu pensamento, o contraste entre uma abordagem, ou atitude, objectiva e outra subjectiva, em especial em relação com a própria obra de um indivíduo, tornou-se decisivo.

(O meu ponto de vista anti-essencialista implica que perguntas do tipo que é?, nunca são problemas genuínos.)
A teoria expressionista da arte é vazia. Todas as coisas que um homem ou um animal podem fazer são (entre outras coisas) uma expressão de um estado interno, de emoções e de uma personalidade.

Tentar seriamente ser original ou diferente, e tentar também expremir a sua própria personalidade, tem de interferir com o que foi chamado a "integridade" da obra de arte. Numa grande obra de arte, o artista não tenta impor à obra as suas pequenas ambições pessoais, mas usa-as para servir a sua obra.

Por tentativa e erro, o crescimento da obra dependerá do esforço, da sensibilidade ao trabalho de outros e da autocrítica.

Se adoptarmos a teoria da inspiração [divina] e do frenesim, mas deitarmos fora a sua origem divina, chegamos imediatamente à moderna teoria (...) uma espécie de teologia sem Deus - com a essência do artista a tomar o lugar dos deuses [auto-inspiração].

A função realmente interessante das emoções é que elas possam ser usadas para testar o sucesso ou a adequação ou o impacto da obra (objectiva): e pode modificar ou reescrever a sua composição quando insatisfeito com a reação; ou até abandoná-la completamente.

A teoria de Platão, na sua forma não teológica, dificilmente é compatível com uma teoria objectivista que vê a sinceridade da obra no resultado da autocrítica do artista. Todavia tornou-se parte da tradição clássica da teoria retórica e poética (...) ao ponto de sugerir que uma descrição ou representação bem-sucedida das emoções dependia da profundidade das emoções de que o artista era capaz de sentir.
Só o artista que primeiro sofreu é capaz de julgar críticamente o impacto da sua obra.
(...)

O resultado pode ser comovente; mas a nossa apreciação pode ser baseada no sentido de adequação. Similarmente, a tarefa põe um problema defenido; e o problema pode ser tornado mais específico através da exigência de se enquadrar "numa certa suite meio completada".
[ Ver o músico como estando a lutar para resolver problemas musicais é muito diferente de vê-lo como empenhado na expressão das suas emoções.*]


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Entusiasmados com o estudo embora cépticos quanto às teorias da educação - teorias importadas principalmente da América (John Dewey) e da Alemanha (Georg Kerschensteiner) - [pela] experiência com crianças abandonadas.

[ Karl Buhler ] (...) teoria dos três níveis ou funções da linguagem: a função expressiva, a função de sinal ou apelativa e, num nível mais alto, a função descritiva. As duas funções inferiores eram comuns às linguagens humana e animal e estavam sempre presentes, ao passo que a terceira função era caractrística da linguagem humana e, por vezes (como nas exclamações), ausente mesmo desta.

Levou à conclusão de que a teoria da arte como "comunicação" (ou seja, apelo)* era igualmente vazia, dado que essas duas funções estavam virtualmente presentes em todas as linguagens, até nas linguagens animais. (...) A função argumentativa da linguagem tornou-se particularmente importante porque a via como a base de todo o pensamento crítico.

(...)

[ Psicologia do conhecimento ou da descoberta ]

(...) enfatizar o meu realismo, a minha convicção de que existe um mundo real e que o problema do conhecimento é o problema de como descobrir esse mundo. Se queremos argumentar sobre ele, não podemos partir das nossas experiências dos sentidos (ou mesmo dos nossos sentimentos) sem cair nas armadilhas do psicologismo, idealismo, positivismo, fenomenalismo, ou mesmo solipsismo - que me recusava a levar a sério.

Os dados dos sentidos, as ideias ou impressões "simples" e outras eram fictícias - baseadas em tentativas erradas de transferir o atomismo (ou a lógica aristotélica) da física para a psicologia.

Não pensamos por imagens mas em termos de problemas e das tentativas de lhes encontrar soluções.

A psicologia associativa - a psicologia de Locke, Berkeley e Hume - era meramente uma tradução em termos psicológicos da lógica de sujeito-perdicado aristotélica.

É incrível que alguém a confunda com psicologia émpirica.

Na Lógica de Kulpe, os argumentos eram vistos como juízos complexos (o que é um erro do ponto de vista da lógica moderna). Em consequência, não poderia existir verdadeiramente distinção entre julgar e argumentar. A função descritiva da linguagem (que correspondia aos "juízos") e a função argumentativa eram a mesma.
[ (...) distinguir entre uma inferência (implicação lógica) e um enunciado condicional (implicação material). Uma inferência era um conjunto ordenado de enunciados. ]

A função expressiva de Buhler podia ser separada da função comunicativa (ou função apelativa) porque um animal ou um homem pode expremir-se mesmo quando não existe nenhum "receptor" para ser estimulado. As funções expressiva e comunicativa podiam ser distinguidas da função descritiva de Buhler porque um animal ou um homem pode comunicar medo (por exemplo) sem descrever o objecto receado. A função descritiva (exclusiva do homem) era, então, claramente discernível da função argumentativa, dado que existem linguagens, como os mapas, que são descritivas mas não argumentativas. (Isto, já agora, faz da analogia entre mapas e teorias científicas uma analogia particularmente infeliz. As teorias são essencialmente sistemas argumentativos de enunciados: o seu ponto principal é que explicam dedutivamente. Os mapas são não-argumentativos. É claro que todas as teorias são também descritivas, como um mapa - tal como são, à semelhança de toda a linguagem descritiva, comunicativas, dado que impelem as pessoas à acção; e também expressivas, porque são sintomas do "estado" do comunicador.) Portanto, havia um segundo caso em que um erro de lógica levava a um erro da psicologia; neste caso particular, a psicologia das disposições linguísticas e das necessidades biológicas inatas que subjazem aos usos e realizações da linguagem humana.

Tudo isto mostrou a prioridade do estudo da lógica em relação ao estudo dos processos subjectivos do pensar. (...) vim a compreender que a teoria do reflexo condicionado estava errada. Os cães de Pavlov têm de ser interpretados como procurando invariantes no campo da aquisição de comida (um campo que é aberto à exploração por tentativa e erro) e como fabricando expectativas, ou previsões, de acontecimentos iminentes. Pode chamar-se "condicionamento" a isto; mas não é um reflexo formado como resultado de um processo de aprendizagem, é uma descoberta (talvez errada) do que se deve prever.
[ Konrad Lorenz, Evolution and Modification of Behavior: "... a modificabilidade só ocorre... onde os mecanismos de aprendizagem inatos são filogeneticamente programados para executar justamente essa função." (...) Pode enunciar-se a prncipal diferença entre psicologia associativa ou a teoria do reflexo condicionado, por um lado, e a descuberta por tentativa e erro, por outro, dizendo que a primeira é essencialmente lamarckiana (ou "instritiva") e a última essencialmente darwiniana (ou "selectiva"). ]


segunda-feira, 5 de abril de 2010

UTILITARIMO


INTRODUÇÃO

Vida e obra

O utilitarismo pode ser caracterizado, de modo geral, como a posição de que o prazer é a única coisa boa, e a dor a única coisa má, e que há que maximizar o prazer e minimizar a dor.

De acordo com o empirismo, todo o conhecimento provém dos sentidos. De acordo com o associativismo, as nossas ideias estão ligadas entre si através de leis gerais.

No seu tempo, as obras mais influentes de Mill foram Sistema de Lógica e Princípios de Economia Política. A primeira defende um tratamento empirista daquilo que é hoje abrangido pela epistemologia, a filosofia da linguagem e a filosofia da ciência; a segunda, exibe uma grande preocupação pelas condições de vida da classe operária. Contudo, as obras de Mill que exerceram maior influência no século XX foram Utilitarismo e Sobre a Liberdade. A primeira defende, em traços gerais, o utilitarismo de James Mill e Bentham, e a segunda é uma defesa, hoje clássica, da posição de que o estado deve evitar ao máximo interferir na vida das pessoas. As obras de Mill exibem a abrangência dos seus interesses, não apenas intelectuais e académicos, mas também filantrópicos e sociais.


A filosofia moral de Mill

O consequencialismo é uma teoria composta por duas partes: uma teoria do bom e uma teoria do correcto. A primeira trata de determinar que estados de coisas são bons, fornecendo também critérios para os comparar (...) o correcto consiste em maximizar o bom.

Teorias "não consequentalistas" defendem uma relação diferente entre a teoria do bom e a teoria do correcto. [Uma teoria ... típica] nega que o correcto consista sempre em maximizar o bom.


A teoria do bom de Mill

Em primeiro lugar, é preciso especificar a teoria do bom. Em segundo lugar, é preciso especificar o que se entende por "maximizar o bom".

Ao contrário de Bentham (também ele hedonista), Mill considera que há prazeres superiores e inferiores, sendo que um prazer superior é sempre preferível a um prazer inferior, ainda que seja menos intenso e menos duradouro que este. Os prazeres que Mill menciona, especificamente são os que estão associados ao intelecto, às emoções, à imaginação e aos sentimentos morais.


A noção de maximização de Mill

Uma acção é correcta se, e só se, [previsivelmente] maximiza a utilidade de todos os envolvidos. (...) Não interessa como essa utilidade está "distribuída".

É preciso especificar: previsivelmente para quem? (...) Todas as teorias normativas enfrentam este problema.


Utilitarismo dos actos e utilitarismo das regras

O utilitarismo das regras foi acusado, por diversas vezes, de ser uma posição insustentável: ou se reduz (tanto em teoria, como na prática) a uma versão de não consequencialismo, ou se reduz (se não em teoria, então pelo menos na prática) ao utilitarismo dos actos.


Críticas preliminares ao utilitarismo de Mill


Problemas com a noção de maximização

Não especificámos se a maximização da utilidade se refere à maximização da utilidade de todos os seres que presentemente existem, ou que poderão vir a existir.


Boas dores e maus prazeres

(...)
O eudemonismo é a posição, de inspiração aristotélica, de que o bom é a felicidade.


Prazeres superiores e inferiores

Há quem objecte que isso é inconsistente com o hedonismo; mas a distinção entre prazeres superiores e inferiores não é, certamente, inconsistente com o eudemonismo.


Utilitarismo das preferências

Durante o século XX, vários filósofos preferiram deixar de falar em maximizar o prazer, e passaram a falar em maximizar a satisfação de preferências.

A não ser que tenhamos razão para pensar que a pessoa está a ser irracional ou ignora factos relevantes, há uma presunção a favor da ideia de que devemos deixar que a pessoa escolha.

A capacidade de determinarmos como viver a nossa vida, é um elemento tão importante de uma vida feliz que qualquer interferência deve ser evitada a todo o custo. O utilitarismo das preferências e o eudemonismo partilham uma ideia muito importante: a de que a própria pessoa pode não saber o que é melhor para ela.


Comparações interpessoais de utilidade

Há quem se oponha ao utilitarismo por defender a possibilidade de estabelecer comparações interpessoais de utilidade. Há duas versões principais desta objecção. De acordo com a versão epistemológica, é muito difícil encontrar métodos fiáveis para comparar a utilidade entre diferentes pessoas. De acordo com a versão metafísica, as utilidades individuais são incomesuráveis.

A versão epistemológica da objecção não nega que seja possível estabelecer comparações interpessoais de utilidade, mas frisa que é raro haver situações de tão fácil resolução. No entanto, ao rejeitar o hedonismo e aceitar o eudemonismo, deixamos de considerar que são experiências mentais de prazer de diferentes pessoas que têm de ser comparadas; por isso, esta motivação passa a ser infundada.

Por isso, a resposta à versão epistemológica da objecção é a seguinte: desde que saibamos quais são os elementos principais de uma vida feliz e qual o seu peso relativo, saberemos estabelecer comparações interpessoais de utilidade.


Objecções não consequencialistas

Veremos três distinções importantes que o utilitarismo (e, de facto, qualquer teoria consequencialista) parece não conseguir acomodar.


Três distinções

1. A Distinção entre Actos e Omissões - Os defensores da distinção dizem que o utilitarismo implica que uma omissão e um acto são condutas igualmente más, dado que ambas terão as mesmas consequências. Mas, intuitivamente, parece ser pior um acto do que uma omissão.

A única coisa a que o utilitarista pode apelar é à diferença entre a avaliação da moralidade e da acção, e a avaliação da moralidade do carácter do agente. Embora as acções sejam igualmente más, um agente é moralmente muito pior que o outro. No entanto, para o utilitarista clássico, (...) depara-se com a objecção do benfeitor involuntário (...) que, embora aja apenas de modo egoísta realiza a acção que previsivelmente maximizará a utilidade, dado que, (...) o utilitarista parece forçado a dizer que o benfeitor involuntário tem um bom carácter. Mas não pode ter um bom carácter porque ele não realiza essa acção porque quer realizar a acção que previsivelmente maximizará a utilidade. Logo, ao utilitarista clássico só parece restar a opção de deixar de falar de bom e mau carácter e falar apenas em boas e más acções.

2. A Distinção ente os Efeitos Pretendidos de uma Acção e os Efeitos Previstos de uma Acção - O exemplo que tradicionalmente se dá para ilustrar a distinção é a de dois tipos de aborto: por histerectomia (o útero é removido) e por cranioclasia (a cabeça do feto é esmagada). De acordo com a interpretação mais comum do chamado "princípio do duplo efeito", desde que a vida da mãe esteja em perigo, o aborto por histerectomia é permitido, pois a morte do feto é prevista, mas não pretendida; o aborto por cranioclasia, por outro lado, não é permitido, pois a morte do feto é pretendida e não apenas prevista.

Um utilitarista terá de dizer que o resultado de realizar uma histerectomia e uma cranioclasia é precisamente o mesmo, pelo que ou é permitido realizar o aborto em ambos os casos ou não é permitido realizar o aborto em qualquer dos casos. O utilitarista não consegue dar lugar à distinção entre efeitos previstos e efeitos pretendidos, que todavia tem um certo apelo intuitivo.

3. A Distinção entre Actos Exigidos pelo Dever e Actos Supererrogatórios - (...) de origem latina: supererogatio significa literalmente, "pagar mais do que é devido".

Se um acto é comummente tido por caridoso maximiza a utilidade, então esse acto não é meramente supererrogatório, mas sim exigido pelo dever. Por isso, de acordo com o utilitarismo não há actos supererrogatórios. Intuitivamente, isto parece falso.

[ O utilitarismo não distingue entre responsabilidade positiva (responsabilidade pelas coisas que fazemos) e responsabilidade negativa (responsabilidade por todas as coisas que acontecem o mundo), "A Critique of Utilitarianism" de Bernard Williams. ]

Mill tenta dar lugar à noção de supererrogação dizendo que, "Ninguém tem um direito moral a nossa generosidade ou beneficência, porque não estamos obrigados moralmente obrigados a praticar essas virtudes para com qualquer indivíduo determinado". Uma das ideias básicas do consequencialismo é que, se duas acções têm, previsivelmente, as mesmas consequências, realizá-las tem o mesmo valor moral. Se Mill põe isto em causa, então parece estar a abandonar o consequencialismo.


O utilitarismo e a individualidade das pessoas

Por vezes, é legítimo esquecer a individualidade das pessoas e tratar o conjunto destas como se fosse uma única pessoa.

[Problemas simétricos] O utilitarista não parece dar atenção suficiente à individualidade das pessoas; o adversário do utilitarismo parece dar demasiada atenção à individualidade das pessoas.


Porquê o utilitarismo?

Ao contrário das outras teorias, como a ética das virtudes, que centram a atenção no tipo de pessoa que devemos ser, o utilitarismo dirige directamente a nossa atenção para o modo como as coisas são e para aquilo que precisa de ser feito.


( I ) OBSERVAÇÕES GERAIS

De entre as circunstâncias que constituem a condição do conhecimento humano, poucas há mais reveladoras do estado primitivo no qual se arrasta ainda a especulação do fundamento da moralidade.

É certo que há uma confusão e incerteza semelhantes, e nalguns casos uma discordância semelhante, quanto aos primeiros princípios de todas as ciências, sem que isso tenha, na maioria dos casos, a fiabilidade das conclusões dessas ciências.

[ O conhecimento teórico e o conhecimento prático parecem começar por lados diferentes. No caso das ciências teóricas, geralmente começamos por conhecimento do caso particular, ainda que desconheçamos o princípio. No caso das ciências práticas temos de começar por conhecer o princípio. ]

A nossa faculdade moral fornece-nos apenas os princípios genéricos dos juízos morais; é um ramo da nossa razão, não [abstraída] da nossa faculdade sensível; tem de ser consultada para as doutrinas abstractas da moralidade.
(...)
[ Noção de proposições analíticas: proposições que podemos saber que são verdadeiras, ou falsas, atendendo apenas ao seu significado (o que não é a mesma coisa que dizer que são verdadeiras ou falsas por causa do seu significado, como os positivistas lógicos erradamente julgavam). ]

Apesar de a inexistência de um primeiro princípio reconhecido ter tornado a ética não tanto um guia mas uma consagração dos sentimentos efectivos dos homens, ainda assim, o princípio de utilidade ou, como Bentham mais tarde lhe chamou, o princípio da maior felicidade, tem tido um papel importante na formação das doutrinas morais mesmo daqueles que rejeitam com maior desprezo a sua autoridade. Não há escola alguma de pensamento que recuse admitir que a influência das acções sobre a felicidade é a consideração mais pertinente e até predominante em muitos aspectos da moral. A Metafísica da Ética, de Kant, estabelece um primeiro princípio universal como origem e fundamento da obrigação moral; "Age de tal maneira que a regra da tua acção possa ser adoptada como lei por todos os seres racionais." Mas quando começa a deduzir deste preceito qualquer um dos deveres reais da moralidade, fracassa, de forma quase grotesca (...) as consequências da sua adopção universal seriam de tal ordem que ninguém escolheria sofrê-las.
[ Justificar um princípio dizendo que ao agirmos de acordo com um princípio oposto estaríamos a incorrer numa espécie de contradição é ignorar - ou, pelo menos, atribuir pouca importância - às consequências de se agir de acordo com tal princípio. A objecção de Mill é que, ao contrário do que Kant pretende, não há qualquer argumento a favor de um princípio da moralidade que não seja ao mesmo tempo um argumento sobre as consequências, desejáveis ou não, em função do interesse colectivo, de aceitar ou rejeitar tal princípio. ]

As questões de fins últimos não são susceptíveis de prova directa (...) tem de o ser mostrado que é um meio para algo admitido como bom.
[ Não implica que sejamos forçados a recorrer à estratégia intuicionista (só por meio de uma intuição poderá o intelecto vir a assentir a uma doutrina) ou a aceitar que a escolha entre fins últimos é completamente arbitrária. ]


( II ) O QUE O UTILITARISMO É

[ Bentham considerava que só a intensidade e a duração de um prazer importavam no cálculo da utilidade. Epicuro (342-270 a. C) era hedonista: defendia que o prazer é o único fim último bom. E também defendia que os prazeres mentais são preferíveis aos corporais. No entanto, ao contrário de Mill, defendia que a única coisa boa para cada um era o prazer de cada um. ]

Os epicuristas [cometeram] erros ao derivar o seu esquema de consequências a partir do princípio utilitarista. Para fazer isto de uma forma satisfatória é necessário incluir muitos elementos estóicos e cristãos. Os autores utilitaristas localizaram em geral a superioridade dos prazeres mentais sobre s corporais - isto é, nas suas vantagens circunstanciais em vez de na sua natureza intrínseca; mas poderiam ter tomado outro caminho.

[ Quando uma pessoa diz que prefere A a B, à partida terá uma de duas coisas em mente: 1) que não trocaria uma determinada quantidade de A por qualquer quantidade de B; ou 2) que só trocaria uma quantidade de A por uma quantidade muito mais elevada de B. ]

É um facto inquestionável que aqueles que estão igualmente familiarizados com ambos, e são igualmente capazes de os apreciar e gozar, dão uma acentuada preferência ao modo de vida no qual se faz uso das faculdades superiores. Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas em qualquer um dos animais inferiores, a troco da máxima quantidade dos prazeres de um animal. Se alguma vez imaginam que o fariam, é apenas em casos de infelicidade tão extrema que para fugir dela trocariam o seu destino por qualquer outro, por mais indesejável que fosse aos seus próprios olhos. Um ser com faculdades superiores precisa de mais para ser feliz, é provavelmente capaz de sofrimento mais acentuado, e certamente está a ele exposto com mais frequência, do que um ser de tipo inferior; mas, apesar de todas estas desvantagens, não pode nunca desejar realmente afundar-se no que sente ser um nível inferior de existência. Podemos dar a explicação que quisermos para esta relutância, mas a sua designação mais adequada é um sentido de dignidade, que todos possuem, e numa certa proporcionalidade relativamente às suas faculdades mais elevadas, parte tão essencial da felicidade daqueles nos quais é mais forte, que nada que entre em conflito com ele poderia constituir um obstáculo de desejo, excepto de modo passageiro. [São] duas ideias muito diferentes de felicidade e contentamento. Aprender a suportar as imperfeições da sua felicidade, se são de todo suportáveis; e elas não o farão invejar o ser que não tem consciência das imperfeições. E se o [homem satisfeito] têm uma opinião diferente, é apenas porque conhecem o seu lado da questão. A outra parte (o homem insatisfeito) conhece ambos os lados¶.

Os homens, por fraqueza de carácter, optam com frequência pelo bem mais próximo, entregam-se a prazeres sensuais em prejuízo da saúde, embora com perfeita consciência de que a saúde é o maior dos bens. A capacidade para os sentimentos mais nobres é, na maioria das naturezas, uma planta delicada, facilmente destruída, não apenas por influências hostis, mas por mera falta de sustento. Os homens perdem as suas aspirações mais altas como perdem os seus gostos intelectuais - porque não têm tempo ou oportunidade para os satisfazer; e habituam-se aos prazeres inferiores.

O que há para decidir se vale a pena a prossecução de um determinado prazer à custa de uma determinada dor, excepto os sentimentos e o juízo de quem tem experiência?

[ Regra directriz da conduta humana ] E, se pode duvidar-se se um carácter nobre é mais feliz pela sua nobreza, não pode haver dúvidas de que faz os outros mais felizes, e que o mundo em geral beneficia imensamente com isso. Logo, o utilitarismo só poderia atingir o seu fim cultivando em geral a nobreza de carácter, ainda que cada indivíduo fosse apenas beneficiado pela nobreza alheia, e [não] a sua própria.

[ O utilitarismo defende também os interesses dos animais. ]

Outra classe de objectores, que afirmam que a felicidade, sob qualquer forma, não pode ser o propósito racional da acção e da vida humana; porque, em primeiro lugar, é intangível; e afirmam, de seguida, que os seres humanos não poderiam ter-se tornado nobres a não ser por meio da renúncia (o principio e condição de toda a virtude).
[ (...) da ideia romântica; uma vida atormentada, genial, contemplativa e centrada sobre si. ]

[ Mesmo que a procura da felicidade fosse um objectivo quimérico, o fim último da acção humana seria a redução, ou prevenção, da infelicidade. ]
A felicidade de que falavam não era uma vida em êxtase; mas momentos desses, numa existência feita de umas poucas dores transitórias, muitos e variados prazeres, com uma predominância clara dos prazeres activos sobre os passivos. (...) Uma vida assim constituída sempre pareceu digna do nome felicidade a quantos tiveram a boa sorte de o alcançar. A educação miserável de hoje, e a miserável organização social, são os únicos obstáculos que impedem que esteja ao alcance de quase todos.

As principais componentes de uma vida feliz parecem ser duas, cada uma das quais sendo com frequência considerada por si mesmo suficiente para o efeito: tranquilidade e excitamento. Apenas aqueles para que a indolência se tornou um vício não desejam excitamento após um intervalo de repouso. Para aqueles que não têm afectos privados ou públicos, os excitamentos da vida são muito breves, e em qualquer caso perdem valor. (...) A seguir ao egoísmo, a causa principal que torna a vida insatisfatória é a falta de cultivação do espírito. Um espírito cultivado encontra fontes de inexaurível interesse em tudo quanto o rodeia.

Não há absolutamente qualquer razão na natureza das coisas para que uma quantidade de cultura do espírito suficiente para despertar um interesse inteligente nestes objectos de contemplação não seja a herança de todos quantos nascem num país civilizado. Num mundo onde existe existe tanto de interesse, tanto para desfrutar, e também tanto para corrigir e melhorar, todos os que têm esta moderada quantidade de requisitos morais e intelectuais são capazes de uma existência que podemos considerar invejável; e a menos que tal pessoa, por meio de más leis, ou sujeição à vontade de outrem, seja privada da liberdade de usar as fontes de felicidade ao seu alcance, ela não deixará de achar essa existência invejável, se escapar aos males absolutos da vida, as grandes fontes de sofrimento físico e mental. Ninguém pode duvidar de que a maioria dos grandes males absolutos do mundo são em si mesmos elimináveis (conquistadas pelo empenho e pelo esforço), e serão por fim reduzidos ao mínimo, se o conhecimento humano continuar a melhorar. Cada avanço nessa direcção liberta-nos de algumas arbitrariedades, não apenas das que abreviam as nossas vidas, mas, o que nos importa ainda mais, das que nos privam daqueles de quem a nossa felicidade depende.

[ O transcendentalismo, um tipo de filosofia popular muito comum nos finais do século XIX, defende a existência de um dualismo fundamental entre matéria e o espírito. ]
A moralidade utilitarista reconhece, de facto, nos seres humanos o poder de sacrificarem o seu maior bem em prol do bem dos outros. Apenas recusa admitir que o sacrifício é, em si, um bem. A moralidade utilitarista considera desperdiçado qualquer sacrifício que não aumente, ou tenda a aumentar, a quantidade total de felicidade (de acordo com os limites impostos pelos interesses colectivos da humanidade).

O utilitarismo exige que o agente seja tão estritamente imparcial entre a sua própria felicidade e a dos outros como um espectador desinteressado e benevolente. Fazer aos outros o que queremos que nos façam a nós, e amar o próximo como a si mesmo, constituem a perfeição do ideal da moralidade utilitarista.
(...)
Atingir a maior aproximação possível a este ideal exigiria que as leis e a organização social colocassem o interesse de cada indivíduo, tanto quanto possível, em harmonia com o interesse de todos.

Os críticos do utilitarismo que entre eles têm algo parecido a uma ideia justa do seu carácter desinteressado, encontram por vezes defeito no seu padrão, considerando-o demasiado elevado para a humanidade. Isto é confundir a regra da acção com o seu motivo. O objectivo da ética é dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por que meios podemos conhecê-los; nenhum sistema de ética exige um sentimento de dever. [Moralistas utilitaristas] O motivo nada tem a ver com a moralidade da acção, embora tenha muito a ver com o valor do agente.
[ A moralidade da acção depende inteiramente da intenção - isto é, do que o agente quer fazer. Mas o motivo, é, o sentimento que o faz desejar tal coisa. ]
A esmagadora maioria das boas acções são realizadas não para o bem do mundo, mas dos indivíduos; os pensamentos do homem mais virtuoso não necessitam nestas ocasiões de ir além das pessoas particulares envolvidas, excepto na medida em que é necessário assegurar-se de que ao beneficiá-las não está a violar os direitos de qualquer outra pessoa. As ocasiões nas quais qualquer pessoa tem em seu poder fazer isto numa escala alargada são puramente excpecionais; e apenas nestas ocasiões lhe é exigido que tenha em conta a utilidade pública. Apenas aqueles cuja inflência das acções se alarga à sociedade em geral precisam de preocupar-se habitualmente com um objecto de grandes dimensões.

Afirma-se com frequência que o utilitarismo torna os homens frios e insensíveis, que os faz olhar apenas para as considerações secas e duras das consequências das acções, não incluindo nas suas estimativas morais as qualidades das quais emanam essas acções. Se a afirmação significa que não permitem que o seu juízo sober a correcção ou incorrecção de uma acção seja influenciado pela sua opinião das qualidades da pessoa que a pratica, isto é uma queixa não contra o utilitarismo, mas contra a posse de qualquer padrão de moralidade; pois seguramente nenhum padrão moral de que se saiba decide se uma acção é boa ou má por ser praticada por um homem amável, corajoso ou benevolente, ou o contrário disto. Estas considerações são relevantes, não para a avaliação de acções, mas sim de pessoas. Apesar de tudo, os utilitaristas defendem que a longo prazo a melhor prova de um bom carácter são as boas acções.

Muitos utilitaristas encaram a moralidade das acções numa perspectiva demasiado restritiva, e não dão importância suficiente às outras belezas do carácter pelas quais um ser humano se torna digno de amor ou admiração; tal como o fazem todos os outros moralistas nas mesmas condições. O que pode dizer-se para desculpar os outros moralistas, pode dizer-se também no caso dos utilitaristas, nomeadamente que, a ter de haver algum erro, é preferível que seja por esse lado. Como entre os adeptos de outros sistemas, existem todos os graus imagináveis de rigidez e indulgência na aplicação do seu padrão: alguns são mesmo de um rigor puritano, enquanto outros são tão indulgentes quanto um pecador ou um sentimentalista pode desejar.


As pessoas esforçam-se frequentemente tão pouco para entender o significado de qualquer opinião contra a qual tenham preconceitos, têm em geral pouca consciência de que esta ignorância voluntária constitui um defeito. Caso seja verdadeira a crença de que Deus deseja a felicidade das suas criaturas, e que esse foi o proposito ao criá-las, a utilidade não só não é uma doutrina ímpia, como é mais profundamente religiosa do que qualquer outra.

A utilidade é com frequência estigmatizada de forma sumária como doutrina imoral chamando-se-lhe expediência, tirando partido do uso popular desse termo.
[ "Expediência" tem dois sentidos comuns (eficiência e oportunismo), (...) qualquer consideração do que é correcto implica na realidade uma consideração do que é expediente no sentido de ser eficiente. O que é expediente no sentido de ser oportunista, revela-se prejudicial do ponto de vista da eficiência. ]
Qualquer desvio da verdade, ainda que involuntário, leva, na mesma proporção, ao enfraquecimento da fiabilidade das afirmações humanas, fiabilidade essa que é não apenas o suporte principal de todo o bem-estar social presente, mas cuja insuficiência faz mais do que qualquer outra coisa para retardar a civilização.

Durante toda a existência prévia da espécie humana, a humanidade tem estado a aprender por experiência as tendências das acções. É um capricho da fantasia supor que, se a humanidade concordasse em considerar a utilidade do teste da moralidade, continuaria sem concordar quanto ao que é útil, e não tomaria medidas para ensinar as suas noções sobre o assunto aos mais jovens, e impô-las por meio da lei e da opinião. Não é difícil provar que qualquer padrão ético funciona mal, desde que imaginemos a estupidez universal associada a ele. (...) Os corolários do princípio de utilidade, como os preceitos de qualquer arte prática, permitem um aperfeiçoamento sem limites e, num estado progressivo da mente humana, o seu aprefeiçoamento está permanentemente em curso. Mas passar por cima das generalizações intermédias, e testar cada acção individual directamente pelo primeiro princípio, é outra coisa. É uma estranha noção que o reconhecimento de um primeiro princípio é inconsistente com a admissão de princípios secundários. Seja qual for o princípio fundamental da moral que adoptemos, são necessários princípios subordinados para o aplicar; a impossibilidade de passar sem eles, sendo comum a todos os sistemas, não pode fornecer argumentos contra nenhum em particular; mas argumentar seriamente como se tais princípios secundários não pudessem existir, e como se a humanidade tivesse permanecido até agora, e deva permanecer para sempre, sem retirar quaisquer conclusões gerais da experiência da vida humana é atingir o ponto mais alto do absurdo alguma vez alcançado em controvérsias filósoficas.

Os restantes argumentos de reserva contra o utilitarismo consistem na sua maioria em atribuir-lhe a responsabilidade das fraquezas comuns da natureza humana, e as dificuldades gerais que embaraçam as pessoas conscienciosas ao moldarem o seu percurso na vida. Não é culpa de qualquer doutrina, mas sim da natureza complicada da vida humana, que a regras de conduta não possam ser estruturadas de tal forma que não requeiram excepções. Não existe qualquer doutrina ética que não tempere a rigidez das suas leis, permitindo uma certa margem de manobra, sob a responsabilidade do agente, para dar conta das peculiaridades das circunstâncias; e, em qualquer doutrina, aproveitando esta abertura, infiltrando-se o auto-engano e a desonestidade casuística. Não existe sistema moral algum sob o qual não ocorram casos inequívocos de obrigações contraditórias. São ultrapassados, na prática, com maior ou menor sucessom segundo o intelecto e a virtude dos indivíduos. Embora a aplicação do padrão possa ser difícil, é melhor do que não ter padrão nenhum; enquanto, noutros sistemas, com todas as leis morais a reclamar autoridade independente, não existe um árbitro comum capaz de se interpor entre elas; assentam em algo pouco melhor do que a sofística, e pela influência não reconhecida do princípio da utilidade, proporcionam livre amplitude à actuação de desejos e preferências pessoais. (...) Não há caso algum de obrigação moral no qual não esteja envolvido algum princípio secundário.


( III ) SOBRE A SANÇÃO ÚLTIMA DO PRINCÍPIO DE UTILIDADE

A questão apropriada [é] de onde deriva a sua força vinculativa?
[ Mill parece perguntar, por um lado, quais são os motivos, as sanções, quenos levam, ou podem levar, a agir moralmente. Mas, por outro lado, parece também estar a colocar uma pergunta ligeramente diferente: De onde deriva a moralidade o seu poder de me obrigar a fazer certas coisas? Presta-se a estas duas interpretações.
"No caso deste sentimento moral [o sentimento de justiça], como no caso dos outros sentimentos morais que temos, não há uma ligação necessária entre a questão da sua origem, e a da sua força vinculativa. O facto de um sentimento nos ser atribuído pela natureza não legitima necessariamente todas as suas inclinações." ]
Surge sempre que uma pessoa é exortada a adoptar um padrão, ou a remeter a moralidade para qualquer base sobre a qual não esteja habituado a apoiá-la. Pois a moralidade comum, aquela que foi consagrada pela educação e pela opinião, é a única que surge na mente associada ao sentimento de ser obrigatória em si; e, quando se pede a uma pessoa para acreditar que esta moralidade deriva a sua obrigatoriedade, os supostos corolários parecem ter maior força vinculativa do que o teorema original.

As sanções externas são a esperança de aprovação e o receio da parte dos nossos semelhantes. Exista ou não qualquer outra base de obrigação moral além da felicidade geral e, por mais imperfeita que possa ser a sua própria prática, desejam e elogiam nos outros toda a conduta face a si próprios susceptível de promover neles a felicidade.
(...)

A sanção interna do dever é uma só - um sentimento na nossa mente; mais ou menos intensa, resultante da violação do dever. Este sentimento, estando ligado à ideia pura de dever, e não a uma forma particular do mesmo, ou a qualquer uma das circunstâncias meramente extrínsecas, é a essência da consciência moral. A sua força vinculativa consiste na existência de uma massa de sentimentos que tem de ser vencida para se conseguir violar o nosso padrão do correcto e que, se ainda assim o violarmos, terá provavelmente de ser confrontada depois sob a forma de remorso. É isto que essencialmente a constitui.

Um sentimento subjectivo nas nossas mentes.
[ Nada há de externo à mente humana que mostre que a felicidade é boa ou que a faça boa. São os sentimentos morais que as pessoas têm que as fazem agir moralmente. (...) opõe-se assim a filósofos como Kant, que declaram ser a razão pura a fonte da obrigação moral. Kant distinguia as coisas tal como são percepcionados por nós - os fenómenos - das coisas tal como são em sem si mesmas. ]
[Ontologia] Nenhuma crença de que o dever é uma realidade objectiva é mais forte do que a crença de que Deus o é. A noção dos moralistas transcendentais tem de ser que esta sanção não existirá na mente a menos que se acredite ter a sua raiz fora da mente; quando o sentimento cessa, a obrigação cessa, e se achar o sentimento incoveniente, pode ignorá-lo e fazer o possível para tentar ver-se livre dele. Todos os moralistas admitem e lamentam a facilidade com que, na generalidade das mentes, a consciência moral pode ser silenciada ou suprimida.

Como outras capacidade adquiridas, a faculdade moral, se não é uma parte da nossa natureza, é uma ramificação natural dela; e suceptível de ser levada a um elevado grau de desenvolvimento através da cultura. Infelizmente é também susceptível de ser cultivada em praticamente qualquer direcção, mediante um uso suficiente das sanções externas e da força de impressões precoces.

Qualquer condição que seja essencial para um estado de sociedade, torna-se cada vez mais uma parte inseparável da concepção que cada pessoa tem do estado de coisas no qual nasceu. A associação entre iguais só pode existir baseada no entendimento de que os interesses de todos têm de ser encarados de modo igual. O fortalecimento dos laços sociais, e todo o crescimento saudável da sociedade, não dá apenas a cada indivíduo um interesse pessoal mais forte na consulta efectiva do bem-estar dos outros; leva-o também a identificar os seus sentimentos com um grau ainda maior de consideração prática por esse bem. O indivíduo ganha consciência de si próprio como um ser que se preocupa com os outros. Consequentemente, os mais pequenos germes desse sentimento são apossados e alimentados pelo contágio da empatia e as influências da educação; tecida à sua volta pela acção poderosa das sanções externas. Se agora imaginarmos este sentimento de unidade a ser ensinado como uma religião, e toda a força da educação, das instituições e da opinião, dirigidos, como em tempos aconteceu com a religião, no sentido de fazer cada pessoa crescer, desde a infância, rodeada por todos os lados pela afirmação e pela prática desse sentimento de unidade, penso que ninguém capaz de conceber esta ideia sentirá qualquer apreensão quanto à suficiência da sanção suprema para a moral da felicidade. A qualquer estudante de ética que ache difícil conceber tal ideia, recomendo para o facilitar, a segunda das duas principais obras de Monsieur Comte, o Systême de Politique Positive.

A concepção profundamente arreigada que cada indivíduo tem de si próprio tende a fazê-lo sentir como um dos seus desejos naturais que exista harmonia entre os seus sentimentos objectivos e os dos seus semelhantes. Esta convicção é a sanção suprema da moralidade da maior felicidade (...) constitui em si uma força vinculativa interna, proporcional à sensibilidade e generosidade de carácter.


( IV ) SOBRE O TIPO DE PROVA QUE O PRINCÍPIO DE UTILIDADE ADMITE

Se o fim que a doutrina utilitatista propõe para si mesma não fosse, em teoria e na prática, reconhecido como um fim, nada poderia alguma vez convencer alguém que o era. Nenhuma razão pode ser avançada para explicar por que razão a felicidade geral é desejável, excepto que cada pessoa, na medida em que pensa poder alcançar a sua própria felicidade, deseja-a.*
A felicidade conquistou o título de um dos fins da conduta e, consequentemente, um dos critérios da moralidade.

O desejo da virtude não é tão universal, mas é um facto tão autêntico como o desejo de felicidade.

A doutrina utilitarista defende não apenas que há que desejar a virtude, mas que há que desejá-la desinteressadamente, por si mesma. [Moralistas utilitaristas] acreditam que as acções e disposições apenas são virtuosas porque promovem outro fim que não a virtude; (...) a partir de considerações deste genero não apenas colocam a virtude à cabeça das coisas boas como meios para o fim último, como também reconhecem como facto psicológico a possibilidade de ser, para o indivíduo, um bem em si. Os ingredientes da felicidade são muito variados, e cada um é desejável em si, e não apenas na medida que engrossa um conjunto.

A virtude não é a única coisa que começa por ser um meio e que, se não fosse um meio para algo mais, seria e permaneceria indiferente, mas que, por associação com aquilo para que é um meio, se torna desejada por si mesma, e com a maior intensidade. Ao ser desejado por si mesmo é desejado como parte da felicidade. A felicidade não é uma ideia abstracta, mas um todo concreto...

Não havia qualquer desejo original de virtude, ou motivo para a virtude, a não ser o facto de propocionar o prazer, e especialmente proteger da dor. Por conseguinte, o padrão utilitarista, embora tolere e aprove os outros desejos adquiridos, até ao ponto a partir do qual se tornariam mais prejudiciais para a felicidade geral do que fomentadores dela, ordena e requer que se cultive o amor da virtude.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O (MAU) COMPORTAMENTO DOS MERCADOS



PARTE I
A VELHA TEORIA


1

Risco, ruína e rendimento


(...) "geometria fractal", tem muitas aplicações nas ciências naturais.
(...) o risco segue claramente padrões que se podem exprimir matematicamente e que se podem modelar num computador. (...) Se olharmos para os mercados como sistemas científicos, poderemos eventualmente criar uma indústria financeira mais forte, assim como um melhor sistema regulador.
(...) progresso [tem como] Efeito colateral inevitável: um elemento de complicação.
(...) ponham de parte, pelo menos por um momento, os detalhes práticos do porquê. (...) obtenham (...) uma melhor compreensão de como os mercados financeiros funcionam.

O estudo do risco

Na lógica distorcida dos mercados, os especialistas em gráficos podem por vezes ter razão. (...) Mas isso é um truque de confiança: (...) toda a gente conhece os níveis de suporte, e que usa essa informação para fazer as suas apostas. (...) Pode por vezes funcionar, mas não constitui os alicerces sobre os quais se pode construir um sistema global de controlo de risco.
(...) assim nasceu [a] "finança moderna" (...) O conceito fundamental é que os preços não são previsíveis, mas as suas flutuações podem ser descritas pelas leis matemáticas do acaso. Por isso, o seu risco é mensurável e controlável - até certo ponto.
(...) não podemos prever muito bem essas influências externas.
Uma variante mais abrangente do pensamento de Bachelier é (...) a hipotese do mercado eficiente. (...) num mercado ideal, toda a informação relevante já foi utilizada para fixar o preço de um título. Uma das implicações desta hipótese é que as variações de ontem não influenciam as de hoje, (...) cada variação de um preço é "independente" das outras.
Enfim, a teoria é elegante, mas tem falhas. (...) A antiga ortodoxia financeira foi fundada com base em duas hipóteses críticas do modelo-chave de Bachelier: as variações dos preços são estatisticamente independentes, e seguem uma distribuição normal.
Primeiro, as variações dos preços não são independentes umas das outras. (...) Se os preços derem hoje um grande salto para cima ou para baixo, há uma probabilidade substancialmente maior de que também variem violentamente amanhã - não é a procissão periódica de altos e baixos que os livros usam para seguir o ciclo normal dos mercados.
(...) "memória longa" (...) tipos diferentes de séries de preços exibem diferentes graus de memória. Alguns têm uma memória forte. Outros uma memória fraca. (...) o fenómeno existe - e que contradiz o modelo do passeio aleatório.
Em segundo lugar, contrariamente ao que diz o pensamento ortodoxo, as variações dos preços estão muito longe de seguir a curva em forma de sino. (...) Os extremos da curva são demasiado grandes: há demasiadas variações importantes.

O poder das leis de potência

(...) as caudas da distribuição não se tornam imperceptíveis, mas seguem uma "lei de potência". Estas são comuns na natureza. (...) Em economia, há já um século que foi descoberta, pelo economista italiano Vilfredo Pareto, uma lei de potência que (...) concentra a maior parte da riqueza da sociedade nas mãos de muito poucos; uma curva em forma de sino seria igualitária, distribuindo a riqueza (...) em torno da média.

Um jogo de azar

Regra I. Os mercados são arriscados
Nos mercados financeiros, as oscilações extremas dos preços são a norma - e não aberrações que possam ser ignoradas. (...) uma estratégia de transacção ou uma avaliação de carteiras têm de incluir nos seus princípios este facto frio e difícil. Exactamente como, depende recursos, talento e estômago para o risco de cada um; como sempre, são as opiniões distintas que fazem o mercado. [simulações de computador são, cada vez mais, utilizadas para experimentar com condições mais alargadas e mais adversas no jogo do "e se acontecer?"]

Regra II. Um problema nunca vem só
A turbulência dos mercados tende a concentrar-se em determinados momentos. (...) Nas salas de transacções financeiras mundiais, os primeiros quinze minutos de cada manhã são extremamente importantes; (...) quando o mercado abre agitado pode muito bem continuar assim. (...) E também (...) é nos momentos de maior agitação - nas crises raras, mas recorrentes, do mundo financeiro - que se ganham e se perdem as maiores fortunas.

Regra III. Os mercados têm personalidade


Regra IV. Os mercados são enganadores
[padrões espúrios e pseudociclos] o mercado financeiro é especialmente dado a esse tipo de miragens estatísticas. (...) Da mesma forma, as bolhas e os colapsos são inerentes aos mercados. São a consequência inevitável da necessidade humana de encontrar padrões onde eles não existem.

Regra V. O tempo do mercado é relativo



2

Pelo lançamento de uma moeda
ou pelo voo de uma flecha?


(...) esta distinção subtil, de pensar nos preços como se estes fossem governados pelo acaso, tem sido a noção da teoria financeira que deu mais frutos e que mais dominou nos últimos cem anos.
O que contesto é a forma como os teóricos financeiros de hoje, nas suas aulas e nos seus livros, calculam as probabilidades.

O acaso nas finanças

A própria ideia vai contra todos os nossos conhecimentos da forma como a sociedade, o comércio e as finanças funcionam. (...) consideramos duas formas de olhar para o mundo:
A primeira é a "causa e efeito", ou determinista. (...) Laplace, afirmou que poderia prever o futuro do cosmos - desde que conhecesse a posição e a velocidade de todas as particularidades nele contidas num certo momento.
Não podemos conhecer tudo. Os físicos abandonaram essa utopia durante o século XX, após a criação da mecânica quântica e, de uma forma distinta, depois do aparecimento da teoria do caos. (...) aprenderam a considerar o mundo de uma segunda forma, como uma caixa negra. Podemos observar o que entra nessa caixa, o que dela sai, mas não o que se passa lá dentro; apenas podemos inferir qual a probabilidade de uma entrada A produzir a saída de Z. Olhar a natureza através das lentes da teoria da probabilidade é aquilo que os matemáticos chamam "visão estocástica".
O mundo das finanças é uma caixa negra coberta por um véu. Não só o seu funcionamento interno está escondido, mas as entradas também estão veladas, devido a más informações financeiras, a notícias contraditórias, ou simplesmente devido a fraudes e a enganos. E depois há o factor mais confuso de todos, as expectativas. O valor de uma acção não sobe devido às boas nóticias acerca da companhia, mas porque as expectativas as boas perspectivas levam investidores a prever que o preço vai continuar a subir, e por isso compram. Trata-se de psicologia, individual e de massas - ainda mais difícil de sondar que os paradoxos da mecânica quântica.
Uma perspectiva macroscópia em vez de microscópia, estocástica em vez de determinista, daria mais frutos. (...) a teoria dos materiais magnéticos. Quando a temperatura sobe acima de um certo ponto crítico, chamado "ponto de Curie", o magnetismo desaparece. Quando o metal é arrefecido novamente abaixo desse ponto, o magnetismo reaparece. Isto numa escala de nano-segundos. (...) químico, matemático e físico, Lars Onsager, aprendeu imensas coisas a partir de um modelo ridiculamente simples. Imaginemos as partículas subatómicas domagnete distribuídas numa grelha como semáforos nos cruzamentos de Nova iorque. Cada semáforo pode estar em dois estados, chamados spin para "cima" ou para "baixo". Quando estão mais ou menos alinhados aparece magnetismo mais ou menos forte; quando estão todos a trabalhar uns contra os outros, o magnetismo desaparece. Na realidade, esta teoria é demasiado simples. Felizmente, a forma exacta como e por que uma partícula interactua com as outras é menos importante do que podemos imaginar.
(...) nos mercados o conceito de acaso é difícil de alcançar, talvez porque, os milhões de pessoas que compram e vendem títulos são indivíduos reais, complexos e familiares.
(...) não são previsíveis nem podem ser controlados.

Acaso, simples ou complexo

Umdos fundadores da teoria das probabilidades moderna, Andrei Nikolaievitch Kolmogorov, escreveu: "O valor espistemológico da teoria das probabilidades assenta no facto de os fenómenos do acaso, considerados colectivamente e a uma grange escala, gerarem uma regolaridade que não é aleatória."
(...) consideremos o velho jogo dolançamento da moeda. Este jogo tem sido popular entre os teóricos desde os dias dos irmãos Bernoulli, uma família prolífica do século XVIII, de matemáticos de Basileia, cujos estudos ajudaram a fundar o campo das probabilidades. (...) o ditame da lei dos grandes números, uma noção do senso comum aprovada pelos matemáticos: se repetirmos uma experiência aleatória um número de vezes sufeciente, a média dos resultados convegirá para o resultado esperado.
Mas (...) Em qualquer momento particular, um irmão pode ter acumulado bastante mais vitórias que derrotas. (...) É uma estrutura de tipo irregular.

Conclusão principal: mesmo nos processos aleatórios mais simples pode começar a emergir um padrão complexo.

Um ponto-chave do meu trabalho é que a aleatoriedade tem mais de um "estado", ou forma, e cada um deles, se fosse autorizado a participar num mercado financeiro, teria um efeito radicalmente diferente sobre a forma como os preços se comportam. Um desses estados é a forma de acaso mais familiar e controlável, a que chamo "branda". (...) A sua expressão matemática clássica é a curva em forma de sino, ou a distribuição "normal" de probabilidade - assim denominada uma vez que foi considerada durante muito tempo a norma da natureza. (...)
Podemos pensar acerca dos três estados - brando, lento, e turbulento - como se o reino do acasso fosse um mundo imaginário, com leis da física peculiares. A aleatoriedade moderada seria então como a fase sólida da matéria: baixas energias, estruturas estáveis, volumes bem defenidos. A aleatoriedade turbulenta é como o estado gasoso da matéria: altas energias, sem estrutura, sem volume. É impossivel saber o que vai fazer ou para onde irá. A aleatoriedade lenta encontra-se entre as duas, o estado líquido.

A forma "branda" do acaso

(...) encontrar o valor "verdadeiro" de qualquer fenómeno natural a partir de dados dispersos devido a observações com erros. Método: fazemos uma estimativa do valor verdadeiro, e medimos a distância de cada observação a esse valor - o erro. Calculamos o quadrado de cada erro e somamos esses valores. (...) A estimativa dos " mínimos quadrados" é a que produz erros que minimizam a soma dos quadrados; é o valor que mais se aproxima das observações.
A variânça, também chamada "desvio-padrão", é uma bitola arbitrária, que mede quão extenso é o sino.
(...)
A curva normal é indestrutível. É o que obtemos se combinarmos muitas pequenas variações, cada uma independente da outra, e cada uma delas negligenciável quando comparada com o todo. Cumulativamente, ao longo do tempo a maneira como o resultado varia forma um padrão regular e previsível.

Os resultados de um archeiro vendado

[ século XIX Augustin-Louis Cauchy ]
A melhor imagem que traduz esta teoria é a de um archeiro em frente a um alvo marcado numa parede infinitamente longa. O archeiro tem os olhos vendados e assim dispara as flechas aleatoriamente, em qualquer direcção. A maior parte das vezes falha, é claro. Metade das vezes dispara na direcção contrária ao alvo, mas nem sequer vamos contar esses casos. Se os seus disparos falhados seguissem um padrão brando da curva em forma de sino, a maior parte estaria relativamente perto do alvo, e muito poucos estariam muito afastados dele. Após um certo número de disparos, a média dos resultados terá estabilizado num valor determinado, e não há praticamente qualquer possibilidade de que o tiro seguinte vá alterar perceptivelmente essa média. Mas o caso de Cauchy é completamente diferente. O disparo mais afastado vai ser quase tão importante como a soma de todos os outros. Falhar por um quilómetro anula 100 tiros a alguns metros do alvo. A sua pontuação no tiro ao alvo de olhos vendados nunca estabiliza numa média agradável e previsível e numa variação consistente em torno dessa média. Na linguagem da probabilidade, os seus erros não convergem para uma média. Têm um valor expectável infinito, e portanto também uma variância infinita.
A diferença entre Gauss e o Cauchy não podia ser maior. Eles correspondem a duas formas distintas de olhar o mundo: uma em que as grandes mudanças são o resultado de muitas pequenas mudanças [modernistas] e outra em que os eventos importantes têm consequências desproporcionadamente grandes [tradicionalistas].

Se fizermos uma corrente eléctrica constante passar através de um fio de cobre poderemos "ouvi-la" num altifalante como um ruído constante, ruído branco - a estática gerada por variações brandas, provocadas pelas excitações térmicas dos electrões. Mas, se tentarmos transmitir dados informáticos através de um cabo longo, vamos observar crepitações e "estalidos" interminentes e irregulares. Os engenheiros chamam a isso ruído 1/f, e é a maldição das comunicações informáticas por causa de erros de transmissão. Não é previsível nem pode ser impedido; pode apenas ser ajustado, usando técnicas de correcção de erros por software. Esta é a variante turbulenta.
A aleatoriedade turbulenta é desconfortável. Não é familiar e em muitos casos ainda está por desenvolver. Muitas vezes requer elaboradas simulações de computador. O mundo não foi pensado para a conveniência dos matemáticos. (...) a economia não é só a física do trigo, do clima e dos resultados das colheitas, mas também do humor caprichoso e das expectativas imensuráveis dos agricultores, dos comerciantes, dos banqueiros e dos consumidores.
Isto cria enigmas bizarros. (...) cada vez que aumentamos a lista e adicionamos empresas cada vez mais pequenas, o valor da média diminui. Se incluirmos o colosso da indústria na nossa análise, ela vai inflacionar grotescamente o valor "típico" de uma empresa. Mas, se a excluirmos, vamos ignorar a companhia mais importante da indústria. Em suma, a distribuição das empresas por dismensões é turbulenta.


3

Bachelier e o seu legado


A sua tese [Théorie de la spéculation] constituiu os alicerces da teoria financeira e, de uma forma mais geral, da teoria de todas as formas de variação probabilística em tempo contínuo.
O interesse pela história das ideias é bom para a alma de um cientista. (...) Para compreender a razão pela qual a teoria ortodoxa dos mercados financeiros e do investimento tem tantos erros, convém primeiro fazer uma pequena recapitulação dessa teoria.

A visão da finança como um jogo
de lançamento da moeda


(...)

Primeiras linhas de Théorie de la Spéculation

Bachelier assumiu a forma dual de pensar tão comum entre os economistas de hoje. Duas formas distintas de olhar para o mesmo evento, uma depois do facto consumado ou ex post facto, e a outra antes de este acontecer ou ex ante.
O preço pode subir ou descer, com grandes ou pequenos incrementos. Mas, sem qualquer nova informação que empurre os preços decisivamente numa direcção ou na outra.
Segundo Bachlier, (...) Se fizermos um histograma com todas as varações de preços de obrigações durante um mês ou um ano, encontramos no papel milimétrico a curva em forma de sino - as muitas pequenas variações aglomeradas no centro do sino, as poucas grandes alterações nos extremos.
Quase um século antes, o grande matemático francês Jean Baptiste Joseph Fourier inventara equações para descrever a forma como o calor se difunde. Bachelier adaptou-as para as probabilidade com que os preços das obrigações sobem ou descem, denominando a técnica "radiação de probabilidade". Estranhamente, funcionava. Por outro lado, (...) a invenção do microscópio permitiu a observação da forma errática como os minúsculos grãos de pólen se agitavam numa amostra de água. Um botânico escocês, Robert Brown, estodou este movimento, observou que não era uma manifestação de vida, mas um fenoméno físico, e recebeu o crédito (talvez inflacionado) pela sua descoberta com a criação da expressão "movimento browniano". Em 1905, Albert Einstein desenvolveu para esse movimento equações muito semelhantes às equações de Bachelier para a probabilidade dos preços das obrigações. O facto de as variações dos preços de títulos, o movimento de moléculas e a difusão de calor poderem pertencer à mesma espécie de matemática não pode deixar de nos maravilhar.

O mercado eficiente

A ideia de Bachelier de um "jogo justo" pegou e os economistas reconheceram as virtudes práticas de descrever os mercados pelas leis do acaso e do movimento browniano. Essas leis foram integradas, nos anos 60 e 70, numa estrutura teórica mais alargada por Eugene F. Fama. (...) que agora se designa "hipótese dos mercados eficientes". A base actual da teoria financeira ortodoxa.
O mercado financeiro é um jogo justo onde os compradores contrabalançam os vendedores. Dado isto, os preços em qualquer instante determinado têm de ser os "correctos". O comprador e o vendedor podem ter opiniões diferentes; um pode querer subir o preço e o outro baixar, mas ambos têm de concordar no preço, ou então não haverá negócio. (...) o preço publicado reflecte a melhor estimativa feita pelo mercado, dadas todas as informações disponíveis, do que um título pode provavelmente render ao seu possuidor. Se isto for verdade é impossível vencer o mercado.
(...) O padrão terá desaparecido, morto pela sua própria descoberta.
Esta é de qualquer forma a teoria. (...) estudando os gráficos de preços, analisando informações públicas ou agindo de acordo com informações internas - o mercado desvaloriza rapidamente essa informação. Os preços sobem ou descem até atingirem um novo equilíbrio entre comprador e vendedor; e então é novamente tão provável que a variação do preço seguinte seja uma subida como uma descida. Isto significa que um investidor, pelas simples probabilidades de um jogo justo, pode esperar ganhar metade das vezes e perder a outra metade. Em resumo, pode não ser assim tão importante gastarmos o nosso tempo e o nosso dinheiro a tentar conseguir informações. É mais fácil e mais seguro ir com o mercado. Comprar um fundo indexado ao mercado de acções. Ser passivo.
(...) é uma casa construída sobre areia.


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A casa da finança moderna

(...) para estimar o valor do capital, o método mais utilizado era o modelo de avaliação de capitais activos, ou CAPM. No total, 73,5 por cento dos inquiridos afirmaram utilizá-lo. Um inqérito semelhante feito em 2001 aos responsáveis pelas finanças de dezasseis países europeus encontrou o mesmo acrónimo, CAPM, nos lábios de 77 por cento.
Os professores que avaliaram os questionários notaram de forma mordaz que os directores financeiros não usavam correctamente o modelo - ou, pelo menos, não da forma ensinada nas faculdades de Economia. E "mesmo aplicado correctamente, não é certo que o CAPM seja um bom modelo".
O CAPM consiste num método simples de avaliação de um activo, quer este seja uma acção que possamos comprar, quer seja uma fábrica que a nossa empressa possa construir. Foi inventado no início dos anos 60 por William F. Sharpe.
MPT (...) a teoria moderna da carteira, um método de seleccionar investimentos inventado nos anos 50 por Harry M. Markowitz.
Black-Scholes (...) a fórmula Black-Scholes de avaliação de opções de contratos e de estimativa do risco; os seus inventores foram Fischer Black e Myron S. Scholes, no início dos anos 70.
(...) estas três inovações constituem os elementos mais importantes da teoria financeira ortodoxa. Todas elas foram desenvolvidas sobre os alicerces teóricos que Bachelier erigiu há séculos atrás.
(...) os alicerces têm de ser consolidados antes de fazermos mais reparações no edifício.

Markowitz: o que é o risco?

Nas bolsas, a sabedoria popular no tempo de Markowitz era simples: ser bom a seleccionar as acções, ou contratar alguém que fosse. Podemos analisar diversas informações sobre uma empresa (...) chegar a uma estimativa de quanto "deve" valer cada acção num mundo ideal. Se o preço for mais baixo, compramos as acções. Mais tarde o resto do mercado acabará por concordar connosco, o valor das acções subirá e conseguiremos um belo lucro. Se parece arriscado, não há problema: dividimos as nossas apostas por várias acções. Se formos bons neste jogo, acabaremos com várias apostas vencedoras que cobrirão as nossas perdas.
Theory of Investment Value, de John Burr Williams (...) defendia que, para estimar o valor de uma acção, se começa por prever os dividendos que esta vai pagar; depois ajusta-se a previsão para a inflacção, para as taxas de juro e para outros factores que possam influenciar a estimativa. Mas os inestidores reais não consideram apenas o seu lucro potencial; as pessoas procuram a diversificação. Avaliam quão arriscado é um título e como o seu valor varia em comparação com o valor de outros títulos.

... Estou grato à minha sorte,
Os meus haveres não foram confiados a só um casco,
Nem a um só lugar. Nem os meus bens dependem
Da fortuna do ano corrente;
Por isso a minha mercadoria não me deixa triste.

O Mercador de Veneza, acto I, cena I

Nesse caso, o lucro desejado - o retorno esperado - depende da nossa estimativa do valor das acções quando vier o momento de as vender. Esse valor estimado, se regressarmos à familiar curva em forma de sino, significa a média de todos os preços que esperamos que a acção possa vir a atingir até ao momento da venda. O risco é difícil de defenir. Talvez dependa da probabilidade de termos advinhado incorrectamente o valor final. (...) as medidas mais comuns de volatilidade são chamadas "variância" e "desvio padrão"; a última é apenas a raiz quadrada da primeira.
Markowitz afirmava que as perspectivas para qualquer título podiam ser descritas por apenas dois números: a recompensa e o risco - ou, matematicamente falando, a média e a variância...
O risco de uma carteira é mais complicado: o todo pode ser maior, ou mais pequeno, que a soma das partes. As acções têm tendência para subir e para descer em grupo; as suas variações estão, em maior ou menor grau, correlacionadas. Markowitz comparou este processo com o jogo do lançamento da moeda. Num intante, dependendo de como as moedas decidissem o lançamento, podíamos ficar ricos ou na bancarrota. (...) aqui entra o truque da teoria das carteiras de Markowitz -, se misturarmos algumas acções não correlacionadas (que dão caras com outras que dão coroas), podemos diminuir o risco total da nossa carteira.
Assim, para cada nível de risco desejado, podemos construir uma carteira eficiente que dará o mázimo lucro possível ... que envolve o menor risco possível. Se fizermos um fráfico com todas estas carteiras, veremos que formam uma curva suave e crescente: as carteiras excitantes e arriscadas perto do topo e as carteiras aborecidas e seguras em baixo.
Houve problemas, é claro. Primeiro, como o próprio Markowitz notou, não é claro que a curva em forma de sino seja a melhor forma de medir o risco no mercado de acções; é simples, mas não é necessariamente correcta. Segundo, para construir carteiras eficientes são necessárias boas previsões do rendimento, do preço e da volatilidade de milhares de acções. Senão, lixo entra, lixo sai. Finalmente, para cada título, é necessário calcular laboriosamente a "covariância", como flutua em relação às outras acções.

Sharpe: qual é o valor de um activo?

Sharpe trabalhou na seguinte questão: o que acontecerá se todos os intervenientes do mercado jogarem segundo as regras de Markowitz? A resposta foi supreendente. Não haveria o mesmo número de carteiras eficientes que pessoas no mercado, mas apenas uma carteira para todos; a "carteira do mercado". Assim nasceu a noção de um fundo indexado ao mercado de acções.
(...) então o valor de cada acção individual depende apenas de como esta se comporta em relação ao resto do mercado.
Olhemos agora para um acção individual. Uma acção mais volátil que o mercado; (...) apesar do risco acrescido em maus momentos, podemos multiplicar o nosso dinheiro noutras ocasiões. Uma acção menos volátil que o mercado - pode ser mais atraente; pagaremos mais por ela, e ficaremos contentes com um lucro mais pequeno. Este "mais" é proporcional a quão bemuma acção reflecte o comportamento do mercado na sua totalidade.
(...) fórmula de Sharpe.
O conceito é simples. Quanto mais arriscarmos, mais podemos esperar ganhar. O risco mais importante é o estado geral da economia. Porque se tornou está fórmula . "modelo de avaliação de capitais activos" - tão popular no mundo da finança? Ela reduz todos os aborrecidos cáculos de carteira de Markowitz a apenas algumas operações.
Quis o destino que houvesse outros, John Lintner, Jan Mossin e jack Treynor, a desenvolver ideias semelhantes. Sharpe foi o primeiro a publicar os seus resultados, embora a maior parte dos economistas actuais creditem juntamente Sharpe, Lintnere e Mossin pelo desenvolvimento do modelo CAPM (Capital Asset Pricing Model).
Em resumo, o CAPM ajuda a impor um limite mínimo ao rendimento esperado...
Isto é apenas a teoria. Na prática, um grande número de outras suposições entram em qualquer cálculo CAPM - e assim uma resposta CAPM aparentemente objectiva pode tornar-se tão subjectiva como qualquer processo político.

Black-Scholes: quanto vale o risco?

(...) mercado de opções sobre acções [26 de Abril de 1973]
Muitas pessoas tinham tentado encontrar uma fórmula para avaliar opções e direitos antes de Black... Um problema comum era pensarem que, para estimar o valor de uma opção ou de um direito hoje, era necessário conhecer o valor da acção subjacente no momento que expirasse - isto é, o lucro ou prejuízo que traria por fim a opção. Tratava-se de uma abordagem sem esperança de sucesso.
Em vez disso, tudo o que precisamos de saber é o que os próprios investidores conhecem, os termos de uma opção (o preço acordado e o prazo) e a que ponto são voláteis as acções dessa companhia. Se as acções forem muito estáveis, as suas opções não vão valer muito, uma vez que a probabilidade de o preço aumentar o sufeciente para tornar as opções úteis é muito baixa. Por outro lado, se uma acção é arriscada, se o seu preço oscila para cima e para baixo, então as opções vão ser mais valiosas. Para além disso, uma vez que a opção amadurece e o preço das acções varia, o valor da opção no mercado altera-se continuamente. A fórmula de Black-Scholes permite recalucar esse valor da mesma forma e com a mesma frequência com que o faz o próprio mercado. (...) "simpleficava todo o tipo de complicações", recorda mais tarde Black, assumir que o risco, ou a volatilidade, de uma acção pode ser descrita pela curva em forma de sino.

Com a ajuda da fórmula de Black-Scholes e das suas muitas emendas subsequentes, são hoje muitas as companhias financeiras que compram diariamente seguros, ou protecções, contra problemas indesejados do mercado - e não apenas em acções. Da mesma forma, os gestores de fundos podem tentar arranjar protecções para as suas carteiras - comprando opções sobre acções que fazem zigue quando as carteiras fazem zague. Não há dúvida de que são caras, mas são mais baratas do que ver uma carteira ruir quando o mercado se põe contra eles. (...) Além disso, permitiu um tipo completamente novo de transacções, não em acções ou divisas, mas na sua volatilidade. Os investigadores podem construir elaboradas combinações de opções de forma a lucrar não quando se atingir um determinado valor, mas quando os preços oscilam mais ferozmente do que o normal. Ou podem conceber um pacote de opções que é rentável apenas se os preços forem estáveis. Desta forma, a fórmula atribui um preço ao risco.

Passar a palavra em Wall Street

As ideias de Black e de outros teóricos estavam a começar a tornar-se um dogma na indústria financeira. Preechiam uma necessidade. Os anos 50 e 60 tinham sido anos de vacas gordas (...) A maioria das acções subiam em consequênca do crescimento pós-guerra e o trabalho do corretor era proporcionar boas escolhas. Contudo, nos anos 70, a inflação e a agitação da economia acabaram com isso: o mercado em queda de 1973-1974 limpou 43 por cento do valor das acções, e o fim do padrão do ouro para o dólar transformou o sonolento mercado de divisas no maior casino do mundo. Assim, o mercado de opções, inicialmente olhado como uma excentricidade de alguns investidores hiperactivos de Chicago, transformou-se num novo ramo da finança. A indústria financeira precisava de novas ferramentas, de novas respostas. É certo que tanto os académicos como as suas teorias eram difíceis e resmungões, e a sua mensagem, que é impossível vencer o mercado, era particularmente mortificante. Mas os clientes de Wall Street eram ainda mais difíceis e resmungões.
Assim, a indústria financeira converteu-se à nova e "moderna" finança. Merrill Lynch transformou o CAPM numa indústria, e começou a produzir periodicamente um "Livro do Beta" para os seus correctores e clientes ávidos de fazerem eles próprios a matemática. As firmas financeiras começaram a construir carteiras eficientes para os seus clientes. Depois de alguns soluços iniciais foi criado o fundo indexado, o instrumento por excelência do investimento passivo. Constitui agora mais de um quarto dos fundos de investimento dos EUA. A indústria transformou-se. (...) economias de escala: se existe apenas uma carteira de mercado e se um produto é sufeciente para todos, então os mesmos fundos e os mesmos analistas podem servir todos os clientes. Concentrar os serviços e poupar dinheiro.
O edifício mantinha-se em pé - desde que se assumisse que Bachelier e os seus discípulos posteriores tinham razão. No conjunto, este edifício intelectual é um testamento extraordinário do engenho do homem. Mas o todo não é mais forte que o seu elemento mais fraco.
O colapso de 19 de Outubro de 1987 (...) o Dow afundou-se 29,2 por cento. Os académicos afirmaram que o colapso não devia ter acontecido. As carteiras de investimento cuidadosamente concebidas explodiram. Os seguros das carteiras baseados em opções falharam - de facto, fizeram mesmo que o mercado piorasse, uma vez que os gestores de fundos se apressaram a comprar mais protecções, e assim fizeram baixar ainda mais os preços. Mais tarde, a confusão financeira dos anos 90 reforçou esse ponto: há algo que não está completamente correcto na teoria.
Os velhos modelos ainda são ensinados, refinados, vendidos a retalho e utilizados, mas já não são olhados com o mesmo grau de respeito.


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Provas contra a moderna teoria
financeira

(...) "a maior vantagem que é possível ter é a informação privada de quem está a comprar o quê,... não acreditamos que o mercado seja eficiente."
(...) estudar a "superfície de volatilidade" do mercado de opções - um gráfico imaginário em três dimensõs, que representa a forma como as flutuações de preços aumentam ou diminuem com a variação dos termos do contrato da opção. Segundo a fórmula de Black-Scholes devia ser achatada. Na realidade, apresenta uma forma complexa e turbulenta.
(...) segundo a teoria ortodoxa, não deviam existir departamentos de investigação. Não se pode ganhar ao mercado, por isso a única coisa necessária são uns poucos de operadores para o seguir. (...)

Hipóteses pouco sólidas

Todos os modelos, por necessidade, distorcem a realidade de uma forma ou de outra. Tem de escolher, entre os vários aspectos da realidade, quais incluir no seu modelo. Um economista elabora hipóteses sobre os mercados e os negócios funcionam, e como as pessoas tomam decisões financeiras. Cada uma dessas hipóteses, quando tomada isoladamente, é absurda.

1) Hipótese: as pessoas são racionais e têm como objectivo enriquecer

2) Hipótese: todos os investidores são iguais

3) Hipótese: as alterações dos preços são quase contínuas

4) Hipótese: as variações dos preços seguem um movimento browniano


PARTE II
A NOVA TEORIA


Os teóricos classicos parecem geómetras num mundo não euclidiano que, ao descobrir experimentalmente que duas rectas aparentemente paralelas se cruzam muitas vezes, censuram as rectas por não serem capazes de se manter direitas - como se este fosse o único remédio para as suas lamentáveis colisões. Contudo, na verdade, não há qualquer remédio possível, a não ser deitar fora o axioma das paralelas e construir uma geometria não euclidiana. Hoje, em economia, é preciso algo semelhante.
JOHN MAYNARD KEYNES


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Mercados turbulentos:
uma apresentação